CHUVA EM CHAMAS
Senti um forte incomodo nas costas certa hora da manhã, ainda com os olhos fechados, virei de barriga para cima para tentar diminuir a dor e voltar a dormir, mas, antes que conseguisse pensar em dormir novamente, senti o bafo pesado de carne podre esquentando meu rosto.
— Mas o quê? — Abri os olhos.
Sobre mim estava uma cara negra com focinho vermelho a me encarar. As presas a mostra e o ar quente saltando de sua boca, o maldito cachorro de chifres me encara com seu olhar demoníaco.
— Dá pra tirar esse maldito Houndoom de cima de mim? — Afastei-me e levantei sobressaltado. O cão rosnou para mim.
— Você têm um medinho dele, não tem? — Uma voz veio do outro lado das grades da cela.
Eu olhei em sua direção enquanto me encolhia o máximo possível. Um gordo fardado me observava com um genuíno olhar de aprovação no rosto. Ele gostava de me ver suar frio na presença daquele cão demoníaco. Aquele cão, nunca poderia me esquecer dele, esteva lá aquela noite... Maior e mais poderoso.
— Apenas, tire-o daqui! — Levantei com determinação desviando do cão e indo em direção a saída da cela. — Quando eu sair, juro que vou acabar com sua raça, seu gordo...
— Houndoom. — Disse o gordo com calma e o cão saltou sobre as minhas costas.
— AAAHHH! — Eu me debatia desesperadamente, com as mãos empurrava meu corpo para longe do cão, mas ele jogava suas patas sobre as minhas costas com toda a força e rajadas de fogo saltavam de sua boca atingindo o chão à minha frente.
Gargalhadas vinham do gordo fardado. Ele tinha os cabelos pretos e a pele branca, os olhos eram minúsculos no rosto imenso e seu riso era esganiçado, em sua farda era possível ler as letras R e P, elas se cruzavam no emblema de meu algoz. De repente o cão saltou e saiu pela cela, o gordo a fechou em seguida e antes que eu pudesse recuperar o fôlego, anunciou:
— Flamethrower, Houndoom! — E voltou a rir.
O fogo tomava conta da cela. Eu me encolhia no centro dela, enquanto as chamas me rodeavam e o calor evaporava minhas lágrimas de desespero. Eu fiquei imóvel e sem reação, pois não conseguia lutar contra o pavor que aquele pokémon me dava, seu olha e seu rosnado eram assustadores e as chamas que me envolviam, aumentavam ainda mais aquele medo. Eu estava indefeso, naquele momento, eu voltava a ser a criança que perdera os pais. O medo e o terror me acompanhavam desde aquela noite...
Eu me sentei na encosta do rio que cruzava aquela parte do caminho. Abri a mochila e fiz a contagem: 7 Oran, 8 Sitrus e algumas Leppa. Não me acostumara com o gosto da Leppa, então deixava essas para alimentar Torchic. Estávamos viajando fazia alguns dias desde o ocorrido, o caminho parecia cheio de perigos, encontrei alguns pokémons selvagens, por sorte, Torchic era corajoso e enfrentou a maioria com destreza.
Eu não sabia como comandá-lo, enfim, ele lutava como podia, esquivando e dando bicadas em seus oponentes. O último, um tipo azulado com um amontoado de folhas na cabeça, nos atacou depois que eu o chutei por acaso, não o vi no meio da grama alta, senti quando um pó arroxeado começou a subir pelos meus calcanhares. Corri para fora e logo atrás, o pequenino. Quando meu Torchic entrou em cena, o pequenino lançou um jato de uma gosma esverdeada, por sorte, Torchic esquivou, mas o local onde caíra ficou com uma marca de queimado, parecia um tipo de ácido, pois onde tocava, corroía. Depois de algumas bicadas, o pequenino se afugentou e correu de volta para a grama alta.
No início me senti corajoso, decidido a encontrar meu pai onde ele estivesse, mas não sabia para onde eles poderiam tê-lo levado e conforme avançava por aquele caminho estranho, o medo tomava conta. Não sabia por mais quanto tempo eu poderia aguentar, nem mesmo sabia por mais quanto tempo Torchic aguentaria, eu não sabia mais o que fazer, por isso, quando alcancei o rio, parei e decidi molhar os pés. Chamei Torchic para fora da pokebola e ele já se armou para atacar.
— Acalme-se. — Disse colocando a mão sobre sua cabeça. — Estamos seguros, por enquanto.
— Torrr... — O pokémon soltou a respiração e sentou, parecendo mais tranquilo.
— As coisas não estão fáceis, eu sei. — Eu olhava para ele com certo desgosto. — Acho que sou como minha mãe, não tenho espírito aventureiro. Devia ter ficado lá...
E um silêncio se abateu entre nós. Por alguns minutos os dois permanecemos sentados, olhando para o rio, na direção da outra margem. Então, chuva...
O sol que irradiava calmo naquela manhã simplesmente se escondeu atrás de grandes nuvens escuras e a chuva fria escorreu sobre meu pescoço, dando arrepios. O mais rápido que pude, levantei-me, peguei a bolsa e com Torchic ao meu lado, corri, mas avançamos muito pouco... Uma esfera arroxeada atravessou nosso caminho, cai sentado e logo ouvi sucessivos comandos e uma batalha que acontecia debaixo de chuva.
— Marill, Aqua Tail, agora. — Dizia uma garota dos cabelos cor de fogo.
Mas, tão prontamente quanto ela, um homem a sua frente respondia.
— Sneasal, Ice Beam!
E mais explosões. Ficamos simplesmente chocados com o que acontecia, eu não conseguia ter nenhuma reação, nem mesmo para fugir daquilo. Algo me prendia ali, talvez fosse o medo, mas no fundo estava sentindo uma euforia, como se quisesse estar no lugar de um deles.
— Você pode até tentar, Abigail, mas não vai conseguir escapar novamente. — O homem sorria descaradamente, um sorriso sombrio.
— Vamos para a contagem — dizia ela, enquanto jogava o gorro do casaco sobre a cabeça. — Abigail, dez, Alto comando, zero!
— Alto comando, um. Sneasal, Shadow Ball, mais uma vez!
Mas este parecia diferente do outro, não ia em direção ao seu Pokémon de orelhas grandes. Me movi por instinto, soltei a bolsa e com exatos dois passos, saltei sobre ela, sentindo a radiação da esfera roxeada passar as minhas costas enquanto caíamos. No instante seguinte, estava sendo empurrado para o lado, enquanto ela tentava se levantar.
— Quem é esse intrometido? — Gritou o homem com fúria nos olhos.
— Esse... Bem, ele veio me dar cobertura. — Ela já estava em pé, como se não tivesse caído. — Contagem. Abigail, 10! Marill, acabe com isso de uma vez, Superpower!
E antes que eu pudesse pensar, senti mãos me agarrando, forçando-me a levantar e fazendo minhas pernas correrem como se não houvesse amanhã. Ainda debaixo de chuva, nós corremos até um velho observatório, ao nosso encalço, Torchic e o Pokémon de orelhas grandes. Nenhum sinal do homem. Subimos alguns lances de escada, passamos por algumas salas totalmente destruídas até chegarmos a sala do enorme telescópio.
Parecia ser de potente, mas havia muitos cacos ao seu redor o que dava para entender que não funcionava mais, na verdade, aquele lugar parecia abandonado há muito tempo, ou era o que ela queriam que pensassem.
— Agora, vamos bater um papinho. — Ela me agarrou pelo colarinho e me arrastou até o telescópio gigante. — Spinarak, teia nele.
Eu simplesmente não pude reagir, ela mal terminara de falar, senti algo sobre meus pulsos e pernas, era grudento, então, novos jatos, um após o outro e eu estava cada vez mais preso ao telescópio. Rapidamente fiquei coberto de teia, não demorou para que o pokémon se revelasse, tinha o corpo verde com listras, era pequeno, mas sua teia era muito resistente.
Abigail por sua vez, era muito bonita. Ela retirou a blusa ensopada e pude notá-la, era mais velha, com toda certeza, era mais alta e magra, mas seus cabelos, longos e vermelhos que pareciam em chamas. Quando dei por mim, Torchic estava ao meu lado, inutilmente tentando arrancar com o bico a teia pegajosa.
— Comece a falar, meu salvador. — Disse ela, enquanto virava minha mochila do avesso sobre o chão destruído da sala do telescópio. — Quem te mandou?
— Do que você está falando? Como assim, quem me mandou? — Absorto respondi.
— Vamos lá, foi o Alto comando que te mandou, pra tentar ganhar a minha confiança. Eles se acham muito esperto mandando uma criança como você para fazer o serviço que o Cão não consegue fazer. — Seu olhar era penetrante.
— Olha, eu não sei do que você está falando. — Tentava eu convencê-la. — Eu e Torthic estávamos no rio, quando começou a chover, nós corremos...
— Você deve me achar alguma imbecil, não é? — Ela se aproximou com a pokebola nas mãos. — Quando começou a chover?! Você sabe muito bem que usei Rain Dance, e essa pokebola, só o Alto comando e os seus coleguinhas possuem. Pode abrir o bico, quem te mandou?
— Você é maluca? — Retruquei, o medo me afligia. — Olha, eu não sei quem é o Alto comando ou os seus amigos. Não sabia que esse ataque, Rain Dance, fazia chover, aliás, nem sabia que existia um ataque assim e a pokebola... — Engoli em seco, sabia que precisava falar, mas ainda era difícil. — Foi um presente do meu pai, antes de ser sequestrado e ter minha casa queimada. Eu nem sabia que elas ainda existiam, para mim era só histórias...
— Qual o seu nome? Sua idade? — Indagou Abigail.
— Meu nome é Lug e tenho 10 anos. — Respondi rapidamente.
— Lug, agora é a minha vez de contar uma história emocionante. — Ela se aproximou. — Como você sabe, me chamo Abigail, sou acusada pelo Alto comando de alta traição, estou sendo caçada desde Sootópolis. Como você também já sabe, escapei dez vezes de suas emboscadas, mas tenho agora em minha ficha, algumas mortes, umas ocasionais, outras propositais. E hoje, como uma benção divina, você me salva. Então, acho melhor você falar, se não quiser ser mais um nome na minha ficha.
— Vou te falar tudo o que sei. — Ergui a cabeça e encarei seu rosto cansado. — CONTAGEM: ABIGAIL, DEZ, ALTO COMANDO, ZERO!
As grades ressoaram na cova. Abri meus olhos, não havia mais cão, nem gordo sarcástico, apenas o cheiro de queimada e a fumaça esbranquiçada no ar. O calor que ainda emanava, me lembrou novamente de Abigail e de seus lindos cabelos cor de fogo. Eu realmente queria que ela estivesse aqui, encontra-la naquele dia pode não ter começado com o pé direito, mas depois de algumas horas e uma bela surra, ela acreditou em mim... Ou pelo menos preferiu me manter perto, para quem sabe me usar como moeda de troca. Uma pena, mal sabia ela o erro que cometia. Mal sabia eu, na enrascada que a colocava só por conhece-la.
Olhei a hora, faltava pouco para o almoço. Então logo aquele porco e o cão voltariam, tentei me recompor, levantei, bati a poeira da roupa, fui até a grade e a chacoalhei. Fechado. Voltei para a cama com o pensamento de algum dia aquele porco esqueceria ela aberta... Algum dia.