They show you how to swim, but they throw you in the deep
Ele é mesmo meu neto.
Demian cambaleava de um lado para o outro, tentando manter os olhos abertos. Segurava os arquivos em uma mão e com a outra bebia um pouco de café. O tomava numa lanchonete meia-boca, descendo a rua. Mais de uma vez apertou o copo e fez café jorrar como num gêiser. Não estava acordado nem acordando. A cabeça balançava e entortava na direção da janela e a rua ia vazia até perder de vista.
Dias antes Demian estivera em um carro, no conforto de bancos de couro e ar-condicionado, e sua vida, nos últimos meses, parecia resumir-se a isso: a rodar de carro na estrada ou na cidade e nunca fazer coisa alguma além. E ele não estava reclamando. Puta que o pariu, não estava reclamando. Mas quando a esmola é muita, o santo desconfia.
Havia sido, então, apanhado saindo do prédio onde vivia. Tinha lá um apartamento com poucas janelas gradeadas, bolhas enormes de infiltração no teto e um problema permanente com o chuveiro. Estava justo indo comprar uma resistência nova quando o sedan estacionou e o vidro desceu, mostrando o rosto enrugado de seu chefe. Uma cortina de fumaça vinha suspensa entre os dedos magros, vindas de um charuto cubano cuja caixa valia duas vezes seu vencimento. Os anéis do velho brilhavam como moedas ao sol.
— Entra e vamos dar uma volta.
Ele entrou. Teve ainda que aturar piadas sobre seu apartamento; convites amolecidos de ir viver com a família. Sorriu seu eterno meio sorriso e negou. Tinha problemas demais com a família para querer viver com ela. Se não fosse escorraçado seria em respeito ao velho, e isso não queria. Iria continuar ajudando no que preciso fosse, mas de fora. O mais distante que lhe fosse permitido. Só que essas coisas ele também não disse. Ficou olhando pela janela.
Quando o carro foi rodando pelas ruas enviesadas de Saffron, zanzando por prédios cinzentos lavados de chuva, Demian se lembrou como odiava aquela cidade. Era um ódio maciço que ameaçava explodir uma hora dessas.
— Sabe o garoto? — O velho disse. Demian se voltou para olhá-lo.
— Aquele... como era mesmo o nome dele?
— Strauss.
E sua risada foi acompanhada por um riso amargo do velho. Talvez a mãe do menino não tivesse tido lá muita criatividade para batizar a criança com o nome de um musicista famoso. O velho tragou o charuto, baixou-o e deixou que o cheiro encorpado do cigarro infestasse o ar.
— Ele é mesmo meu neto.
As suspeitas haviam surgido como surgem as más notícias: repentinas, trazidas por maus ventos e más línguas; cheias de maus agouros e presságios. O homem que sentava a sua frente, glorioso detentor de um império, parecia agora a Demian pouco mais que um menino: um menino que se descobria esperando um presente de aniversário. Johann Strauss era o filho bastardo de seu único herdeiro. Franny havia sido um rapaz ajuizado. Parecia, à época, o perfeito sucessor dos negócios da família, ainda que preso num casamento sem filhos nem frutos; sem calor nem aventura. Morrera tal como vivera: breve, ajuizadamente, pensando fazer a coisa certa.
Hasse desejou poder ter uma dose de uísque que o ajudasse a empurrar garganta abaixo consequências que não aguentava bem sóbrio.
— Quero que vá buscá-lo, Hasse — O inevitável, o inevitável — Quero que o convença a se juntar ao seu velho avô.
E isso o trazia à presente situação: sentado em uma lanchonete em Littleroot, milhas e milhas longe de Kanto, num continente completamente estranho, os dedos queimados de café, um cigarro pendente na outra mão e um garoto de olhos vazios o encarando de uma foto num arquivo. Agora eram seis e quarenta, segundo seu relógio de pulso. Havia tirado Houndour de sua pokébola alguns momentos antes e ele o encarava em amargo silêncio.
— Sou seu treinador agora — Os olhos nunca deixaram o rosto de Strauss, preso para sempre naquela foto de delegacia — Vou cuidar de você. Em troca, espero nada além do melhor. Não ouse me decepcionar. Eu não aceito falhas.
O Houndour assentira, num reconhecimento mudo e temeroso. Os lábios de Demian voltaram ao copo e beberam mais café.
— Vou te chamar de Stejos. Agora vamos. Temos mais o que fazer do que ficarmos sentados aqui.
Ele não lhe dera nenhum sinal de resposta. Assim, levantou-se e fechou a conta. Pôs Houndour ao chão, para que caminhasse ao seu lado e, talvez assim, estabelecessem algum laço de companheirismo. Partiram, assim, para as ruas de Littleroot, refazendo caminhos para saber o que perderam; onde se escondia essa agulha no palheiro que era o menino Strauss.
Última edição por Nesquic em Dom maio 14 2017, 04:18, editado 1 vez(es)