[CONTO] Food

Bob Joegard

Eu tô de saco cheio...

Já fazia alguns anos que eu estava vivendo essa mesma vida. Quando digo isso, me refiro a rotina que sigo religiosamente, a semana toda, o mês todo, o ano todo. Existem intercorrências, mas, a princípio, é como se eu estivesse apenas repetindo o mesmo dia, toda vez.

Muito prazer, meu nome é Bob Joegard. Por aqui me chamam apenas de Bob Joe, mas isso provavelmente não te interessa muito. Eu nasci em Celadon, mas me mudei para Saffron ainda pivete. Desde pequeno, ajudei meu pai em seu barzinho, “Fossa”, e, até hoje, trabalho aqui.

Meu velho já bateu as botas faz bastante tempo. Minha mãe também. Não tenho familiares, não tenho amigos, não tenho propósito. Mas isso não me interessa muito; eu só quero fazer meu negócio bem feito e ficar em paz, capiche?

— Esse take dele polindo os copos ficou ótimo. Acha que consegue outro desse ângulo?

Então por que raios eu tenho que estar me submetendo a isso...?

Suspirei profundamente e bati impacientemente o copo de chopp na bancada de madeira que estava em minha frente. Joguei o pano de prato no mesmo local e em seguida cruzei os braços.

— Senhora... Senhora Estrela... — Balbuciei, tentando chamar atenção da mulher que coordenava todo aquele pandemônio.

— É Stella, senhor Joegard. — Ela corrigiu, de forma polida e em tom de voz cuidadoso.

— Tanto faz. — Dei de ombros. — Estrela, eu não entendi até agora porquê eu estou sendo forçado a fazer isso. Eu dei permissão de gravarem meu bar. Achei que era uma propaganda pra Fossa.

A moça suspirou e folheou alguns papéis que estavam em suas mãos. Coçando seu queixo com o polegar, ela parecia pensativa.

Estrela era uma jovem jornalista investigativa. Seus olhos eram cor de mel e seus curtos cabelos eram castanhos. Seu nariz era pequeno e arrebitado e ela usava óculos redondos que mais pareciam dois fundos de garrafa de cerveja, daquelas bem baratas que eu vendo por aqui pros meus clientes. Daquelas que tem gosto de mijo mesmo, sabe?

— Eu já te expliquei, Senhor Joegard. Você é o único que presenciou um ataque do “Demônio Felpudo”, que está amedrontando os moradores daqui dos arredores já faz algumas semanas! — Ela disse, ajeitando a manga de seu suéter listrado. — Se eu conseguir um furo sobre quem ou o quê é esse bicho, com certeza eu—

— Eu já disse, Senhora Estrela, eu só vi um borrão. — Comentei, antes que ela começasse a falar de novo sobre sua porcaria de promoção, manchete, capa do jornal, blá blá blá. — E já me arrependo amargamente disso.

Ela pareceu pensativa por algum tempo. Começou a tatear suas calças jeans, procurando por alguma coisa em um de seus vários bolsos. Repentinamente, encontrou um pequeno papelzinho em um deles. Estava amassado e parecia ter sido arrancado de um caderno pautado, já que era branco com listras azuis.

— Você disse que “vi um bicho azul que bicou um morador de rua que fica em frente ao seu bar e depois ele saiu correndo”. Como pode ter certeza de que ele foi bicado, se só viu um borrão? — Ela indagou, com os olhos brilhando.

Suspirei novamente, coçando os olhos.

— Filha, eu só usei uma expressão besta. Podia ser “mordido”, “mastigado”, “atacado”, “dado uma ferroada”, ou o que você quiser. Eu falei o que veio na minha cabeça.

Aquilo pareceu desapontá-la um pouco. Por meros segundos, pois logo depois ela sorriu e voltou a tagarelar.

— Você foi o único que viu ela atacar alguém, já que as vítimas sempre são encontradas desmaiadas depois e nunca se lembram de nada. — Ela guardou o pequeno papel amassado em seu bolso novamente e retirou um chiclete Dugtrident do bolso. — Quer um?

— Eu odeio hortelã. Incomoda minha garganta. Seguinte, mocinha... Eu contei tudo que eu sabia. Não quero mais essa bagunça toda no meu bar, entendeu? — Falei, apontando para seus dois fotógrafos idiotas que distribuíam flashs pelo bar a cada movimento feito por... Qualquer coisa. Se uma brisa passa, eles tiram uma foto. — Logo eu vou abrir o Fossa e preciso dele desocupado. — Cruzei os braços novamente e acenei com a cabeça para a direção da saída. — Se quiserem ficar, comprem uma bebida. Mas só você. Não quero seus patetas entupindo meu bar com bugigangas.

Estrela parecia encurralada. Era ficou pensativa por algum tempo; conflitante, encarou seus bobos da corte e depois olhou para mim, como se implorasse por uma chance. No final, ela cedeu, acenando para os dois mascotes.

— Podem ir embora. Eu assumo daqui... — Ela parecia relutante, mas logo sorriu novamente, puxando uma pequena câmera digital do seu bolso. — Não tem problema se eu tiver uma dessa, né? — Ela indagou.

Balancei os ombros, indiferente.

— Tanto faz. Só não peça essa cerveja aqui. — Comentei, colocando o dedo na mais barata do menu. — Tem gosto de mijo.

Ela pareceu surpresa com a afirmação, mas acho que aceitou bem a sugestão, pois logo se prontificou a pedir a segunda cerveja mais barata, que estava logo abaixo.

Bom, essa aí só é meio choca mesmo...

— É pra já. — Comentei, indo em direção ao frigobar.

Seria ótimo se tivesse tudo terminado assim. Uma repórter bebendo uma cervejinha merda e desistindo do meu bar, me deixando em paz...

Ah, quem dera...

Stella Peters

Aquele era o meu dia!

Há semanas, boatos sobre uma espécie de fera com corpo fofo e ações violentas vem assolando a cidade! Todo o setor jornalístico em que trabalho está atrás de descobrir, afinal de contas, quem seria a perigosa criatura que está atormentando pessoas que ficam até tarde na rua.

Temos pouquíssimas pistas sobre o que pode ser. Sabemos que, o que quer que seja, não rouba dinheiro. Ele não machuca a vítima e, por fim, os faz dormir, de forma que ninguém possa reagir. A maioria também não lembra do que aconteceu...

Vários questionamentos começaram a rondar as pessoas no início. Afinal de contas, elas pareciam ilesas, em todos os sentidos! Sendo assim, vinha a interrogação máxima: Por que estavam sendo atacadas?!

Obviamente, é dever meu como repórter descobrir isso. Muito prazer, me chamo Stella Peters e sou uma repórter investigativa em busca de uma ascensão meteórica na carreira! Meu plano é bem simples: quero descobrir quem ou o que está fazendo isso e conseguir uma baita repercussão, criando assim uma chance de me dar bem e, secundariamente, resolver o caso!

Eu amo resolver mistérios, e esse será mais um deles. Com certeza vai ser muito excitante! Mal posso esperar! ! !

...

Ou foi o que pensei.

Enquanto brincava com um simples lápis de madeira, entrelaçando ele entre meus dedos, comecei a observar o quadro investigativo que esbocei no meu escritório. Comecei a cutucar a sua extremidade de borracha em minha boca, cerrando os olhos e chegando em uma dura conclusão.

Eu não tinha pistas...

— Quais as chances disso não ter relação nenhuma com nada e ser só uma pegadinha aleatória? — Me questionei em voz alta, parando de brincar com o lápis. — Nah... Não pode ser...

Eu estava completamente sem esperanças. Pensava que tinha chegado em um beco sem saída. Até que ouvi quatro batidas rítmicas na porta, características de uma única pessoa do jornal...

— Pode entrar... — Falei, desanimada, sabendo o que me aguardava...

— Se não é a melhor repórter de toda Kanto e regiões adjacentes! — Disse o homem, assim que adentro em minha sala e me viu.

Suspirei.

— Naul... — Foi tudo o que consegui dizer naquele momento.

Vamos para a contextualização: este é Naul, um “colega” de trabalho. Ele tem conseguido furos frequentes de todos os tipos de assuntos, e resolveu até mesmo mistérios envolvendo assassinatos nos últimos meses. É realmente uma estrela em ascensão meteórica; e ele entrou um dia depois de mim aqui no jornal.

Muito injusto, se me permite dizer!

Sua careca brilhava com o reflexo da luminária de LED da minha salinha. Usava sempre o mesmo estilo de brusa havaiana de tiozão, daquelas que apenas barbeiros usam. Para complementar, deixava o último botão desabotoado, de modo que parecia cada vez mais um turista estereotipado tentando ser charmoso.
— Parece que nossa querida Stella está encurralada... — Ele acertou em cheio, mas eu nunca iria admitir.

Dei uma risada sem graça e revirei os olhos. Não tinha como ignorar sua presença, já que éramos os únicos na sala, mas eu podia evitar o contato visual com aquele barbeiro cafona e calvo antes dos trinta.

— Ah, você fez de novo... Me olhou com repulsa. — Acertou de novo. —Bem, é uma pena. Eu estava vindo com a informação de que ouvi dizer que houve uma testemunha de um ataque do Demônio Felpudo...

—Espera, o quê?

— Sim, é o dono do Fossa, aquele barzinho na esquina da praça. Se eu fosse você, iria correndo para lá. Ouvi dizer que o cara não curte chamar atenção, mas precisa urgentemente de propaganda para o bar dele. Pode conseguir algo se for engenhosa...

— Você quis dizer mentirosa.

— Rima o suficiente, deve ter um significado equivalente!

Eu não tinha bem como discordar daquilo. Eufórica com a nova informação, logo comecei a me apressar para arrumar minhas coisas. Preciso pegar os documentos que tenho até então, além de contatar os meninos para fazer uma possível reportagem... Gente, essa é a minha chance!
Espera.

— Por que está me contando isso? Você poderia muito bem fazer a matéria e ganhar... Uh... Ganhar mais reputação ainda... — Coisas dolorosas de dizer, sem dúvidas. — E-enfim, por que não fez isso?

— Eu não ligo para esse caso. Com certeza é algum Pokémon selvagem protegendo seu ninho ou coisa do gênero. Desinteressante. — Ele constatou, dando de ombros. — E você estava parecendo meio desanimada, então decidi que seria uma boa para te empolgar um pouco.

Ainda com um pé atrás após suas constatações duvidosamente generosas e friamente certeiras no que tange minha pessoa, apenas consegui encolher os ombros e ficar cabisbaixa. Errado ele não estava...

— Sabe, eu vou. Eu vou lá investigar isso. Mas não porque você me disse para fazer, e sim porque não tenho nada melhor no momento para ocupar o tempo! — Isso soou menos patético na minha mente.

Ele levantou uma de suas sobrancelhas, confuso. Deu um sorriso sem graça e em seguida se virou de costas, saindo de minha sala com simples dizeres:

— Boa sorte com o caso chato.

Ele vai ver... Essa vai ser a maior reviravolta de toda a história midiática, não apenas de jornais, mas de televisão, rádio e tudo que tenho direito! Essa é minha chance!

Naul Ferguson

Acho que o meu relógio de parede está quebrado...

Já faz alguns dias que seu ponteiro anda se mexendo levemente mais para o lado do que deveria. Isso, a princípio, pode parecer algo besta. Mas como ele é de um tamanho mediano, acabo tendo problemas para ver sua hora correta. E, em algum tempo, esses pequenos avanços vão ir se juntando em uma bola de neve, criando adiantamentos de minutos, e, em breve, de horas...

Ao mesmo tempo que é algo que me incomoda, é o tipo de coisa que não posso simplesmente ficar me levantando e indo ajeitar o tempo todo. Do mesmo modo, não tenho tempo para sair e levar para consertar. Sempre esqueço de comprar um novo, também... Acho que é o tipo de coisa que você deixa para lá, permitindo que fique atrapalhando sua vida, se lembrando e esquecendo em seguida...

Três batidas na porta.

— Com licença, Naul... — A figura feminina disse, nem mesmo esperando uma resposta.

Já começava invadindo meu escritório, atropelando todos os meus pensamentos e de forma vigorosa batendo uma grossa e estúpida resma de papel em minha mesa. O impacto foi capaz de fazer com que meus utensílios menores, como canetas e clips, saltassem alguns milímetros para o alto.

— Se não é a melhor repórter de Kanto e regiões adjacentes. — Falei, arrumando minha postura na cadeira e esquecendo do... O que era que eu estava pensando mesmo?

— Eu consegui um depoimento do dono do bar! — Ela exclamou, feliz da vida. Seus olhos amarelados brilhavam em felicidade. Ah, a energia de um jornalista iniciante é sempre contagiante. Sinto falta da minha época assim...

Mesmo que eu e Stella tenhamos começado em épocas semelhantes, tive muito mais sorte com meus casos. Não diria que se trata de ser mais inteligente ou profissional. Stella tem essas duas coisas de sobra. Também é muito dedicada, mas... É como se ela tivesse um azar tremendo com tudo o que pegava para fazer.

Ou sou eu que tenho muita sorte?

— Que beleza! — Respondi, da forma mais energética que eu conseguia fingir. Não queria soar irônico, mas eu já tinha deixado bem claro que achava o caso desinteressante. — E então?

Ela puxou uma cadeira e se sentou a minha frente. Bateu com seu dedo indicador três vezes naquela papelada e levantou suas sobrancelhas repetidas vezes, com um sorriso meio idiota no rosto.

— Consegui tudo isso aqui! — Com um tom de voz até mesmo meio desafinado por causa de sua excitação, ela continuou. — Ele falou sobre tudo! Falou sobre o que viu, ouviu e sentiu. — Ela emendou.

Era realmente impressionante.

— Você conseguiu tirar tudo isso de informação de um ataque de Jigglypuff? — Eu indaguei, surpreso. — Uau...

— Sim! — Ela respondeu, assentindo com a cabeça. — Então, eu meio que... Espera, como você sabe que é um Jigglypuff?

Não pude conter a risada nessa hora. Infelizmente, tive que rir. Gargalhar, confesso. Me senti péssimo vendo a expressão desiludida de Stella, mas era simplesmente... Engraçado demais.

— P-pode parar de rir..? — Ela indagou, meio incomodada. — E-eu estou dando bastante duro nesse caso e não cheguei nessa conclusão ainda, então... Queria saber de onde veio essa sua... Sua teoria... Que provavelmente está certa, baseada no que ouvi... — Tinha a impressão que ela estava murchando a cada palavra que ia soltando.

— Calma, Stella. — Disse, cutucando sua cabeça cabisbaixa. — Não desanima, não. É um palpite, só isso... Afinal de contas, que outro Pokémon iria colocar os outros para dormir, aqui de Kanto?


Ela estava boquiaberta. Seus olhos estavam vazios. Acho que eu destruí toda sua esperança, sem querer...

— M-mas... P-por que um Jigglypuff faria isso? Ele nem... Ele nem roubava nada...

Ela começou a se apoiar em sua montanha de depoimentos recém digitados. Estava ficando pálida.

— D-dream Eater... — Eu balbuciei, meio incerto se deveria sepultar o caso, agora que já tinha matado ele.

— Oh.

Foi tudo que ela disse.

Ela assentiu algumas vezes com a cabeça. Se levantou lentamente e se direcionou para fora de minha sala, gemendo algo como “Tchau...”, mas sem vitalidade nenhuma. Acho que ela morreu por dentro ali...

Putz... Eu não queria fazer isso. Eu fiquei legitimamente surpreso por um segundo e acabei deixando escapar. Queria que ela ganhasse confiança após resolver esse caso... Que ela começasse a ter mais auto estima e tudo...

Olhei para a parede e vi o meu relógio.

Droga, ele tá um pouco mais adiantado... Acho que ele tá quebrado.