T a k e Z e r o
Os trechos mais triviais, aqueles destemperados e foscos, são de certo os mais importantes.
O sol nasce aqui, assim como nasce lá. Milhares de treinadores iniciam sua carreira lá, assim como Hiei aqui. A ansiedade tava daquele jeito, pop star que só quer a atenção pra si; Kasandoro estava prestes a explodir. Tantos anseios, ideias e cenários percorriam seu cérebro, fazendo de Mahogany um cubícolo, um cubícolo que já não comportava o que Hiei viria a se tornar. Ele pisoteava o solo em ritmo mais acelerado que os ponteiros do relógio. O olhar fixo, os braços inquietos, a mente divagante, os batimentos espancando o teto. No futuro, ele contaria desse dia apenas pelos highlights, como quando você toma o primeiro porre e parece que a sua noite passada foi um compilado de teleportes para lugares diferentes e com pessoas diferentes, o tempo todo.
Ele seguiu a cartilha: apresentou-se ao laboratório, ouviu as instruções — mais acenou com a cabeça do que realmente prestou atenção —, recolheu itens essenciais e aguardou pelo tão esperado momento, o tempero baiano do churras. Era um dia agitado no laboratório e muitos outros iniciantes, a maioria com idade próxima, disputavam gotas de atenção do professor, todas empenhadas em fazer a melhor escolha para seu pokemon inicial, bem como encontrar uma maneira de furar a fila para experienciar esse momento o quanto antes.
ISO regulada.
Ângulo torto, mas conceitual.
E um... e dois...
Click clac.
Essa seria a última foto que tiraria em Mahogany por um bom tempo. A multidão de pirralhos, a iluminação em clima de hospital do ambiente e um incauto feixe de luz surfando pela fresta de uma janela. Essa captura seria para sempre marcada como o dia em que tudo começou, por bem ou por mal. Afinal...
... o que resta sempre são quadros.
A fila andou e sua vez chegou. Kasandoro já havia espiado aqueles atendidos a sua frente, e de fato pareciam todas boas escolhas. Cyndaquil e Chikorita surgiam como figuras mais calmas, opostas a Hiei. Totodile, por outro lado, transbordava de energia, entusiasmo, espontaneidade: a opção perfeita, né? Chegado o momento, Kasandoro esticou a mão ao encontro da pokebola que o represntava, mas logo congelou. Ou melhor, tornou-se o próprio Articuno.
— É uma escolha bem difícil, eu sei. Mas acredite, dificilmente você se arrependerá. — inferiu o professor logo que notou a hesitação.
Hiei permaneceu mudo, mas estava tão quanto nunca esteve. No reflexo do balcão por onde o trio de pokebolas repousava, ele viu o reflexo de uma figura roxa que só ele poderia reconhecer naquele estado de abstração, distorção pela luz e tamanho. Foram muitas horas encarando aquele mesmo borrão de diferentes pontos de vista, inconfundível.
— É sério, você precisa escolher um deles. — acrescentou.
— É, precisa escolher logo! Logo! — gritou um pirralho três ou quatro posições atrás na fila, apoiado pelo clubinho da remela oficial 2011.
Hiei recobrou os movimentos e a consciência. O sorriso desabrochou aos poucos à medida em que ajeitava a postura e recolhia o braço. Nenhuma pokebola em mãos.
— Obrigado por tudo, mas eu já tomei minha decisão! — Hiei deu de costas e correu saltando a janela do laboratório com muito ímpeto, o próprio parkour em pessoa. Do lado de fora em uma árvore próxima ele confirmou com os olhos o que seu coração já tinha certeza. Lá estava Aipom, a companhia de seus últimos meses. O pokemon vacilava de um lado para outro de ponta cabeça com o equilíbrio pautado apenas na cauda agarrada na base de um galho. Ele assistia o interior do laboratório, mas não esperava que Hiei surgisse repentinamente de frente para si. Com o susto, o símio escorregou e seguiu em queda livre rumo a terra batida. Ainda era uma espécime jovem, frágil, e o impacto provavelmente seria motivo de dores por vários nasceres do sol. Hiei instintivamente se lançou ao chão e amorteceu Aipom em seu peito, ralando os lados internos de braços e pernas no processo, mas a tempo hábil para o que importava. Aipom se levantou e saltou para trás, não estava habituado ao contato humano, ainda que claramente tivesse formado um vínculo com o garoto. Confuso, ele se pôs em uma posição de ameaça, mas nem havia vivido o bastante para despertar mecânismos de defesa tão avançados. Puto e fofo. Clássico.
— E-eu... eu não quero te forçar a nada, cê tá livre pra escolher se quer vir comigo ou não. Olha aqui. — ele tirou uma pokebola vazia da mochila e a repousou a frente de Aipom, se afastando em seguida. — Eu acho que é só encostar nisso aí. Sei lá, não prestei muita atenção no que o velhin falou antes. — Ele abriu um sorriso amarelo. — Mas assim ó, se não quiser, tu vai ter me feito passar a maior vergonha. Qual é! — brincou.
A postura de bandido mal do macaco desmontou como a moral de coordenadores. Aipom se aproximou da esfera bicolor e travou ali sua própria batalha interna, aquilo ditaria o rumo de sua própria vida.
Os trechos mais triviais, aqueles destemperados e foscos, são de certo os mais importantes.
Seus olhinhos dirigiram até a pokebola, pegaram a entrada à direita na avenida Kasandoro e logo fizeram o retorno ao assunto central. Aipom se lançou de cabeça no equipamento de captura com tanta robustez que quase o desmaiou. A esfera se abriu e envolveu seu corpo através de uma aura incolor que o fisgou para dentro do item. A pokebola balançou... balançou... balançou... e tum: captura confirmada, chocando um total de zero pessoas.
O contentamento preencheu cada centímetro de Hiei, que não poderia exibir mais felicidade por todos os seus trejeitos e expressões. Ele já tinha tudo, equipamentos, instruções, sonhos, e por último, mas não menos importante, uma parceria que prometia ser duradoura. Agora, o mundo o aguardava.
Adeus, Mahogany.