3 - A Maga

Realmente uma abordagem mais direta, indo na porta e pedindo para entrar, não parecia ser a melhor das opções, logo Kyouko fez o que sabia fazer de melhor: caminhar pelas sombras atrás de uma oportunidade, uma brecha que seja.

Um fato curioso: era bem difícil mensurar as dimensões daquele local só olhando pelos arredores. A porta em que o sujeito entrou era ligada a um pequeno barraco e só. Esse barraco não dava em nada além de uma série de prédios e casas menores ao redor, talvez uma delas fosse apenas um armazém ou algo do tipo. O mais curioso era o prédio logo atrás do tal barraco. Era um tipo bem diferente, bem destoante. Era luxuoso e até meio espalhafatoso, e sua frente dava em uma das avenidas mais movimentadas da cidade. O contraste entre o “luxo e o lixo”, então a marginal e o centro eram tão tênues quanto um fio de seda disperso ao vento.

Então, perto da tal avenida, a ninja localizou sua melhor chance de infiltração. Em um beco qualquer repleto de caçambas e sacos de lixo empilhados, havia uma pequena escada com três degraus e dando em uma parede sem portas. Na altura do chão havia uma janela, uma daquelas típicas de banheiros onde se empurra uma parte de vidro e ela abre em um ângulo pouco maior que 45 graus. Estreita demais para um adulto, estreita o bastante para uma adolescente e sua felina gélida.            
 

Trilha Sonora:

Sem muitos esforços ou problemas, Kyouko e sua Weavile entravam por aquela pequena janela. O pé direito do cômodo seguinte era da altura convencional, o que sugeria que a partir dali estava em um local basicamente escavado, muito além de um simples porão, em formato de “L”. Ambas desciam próximas a um amontoado de caixas contendo galões de um produto químico estranho. Alguns passos adiante havia uma porta com luzes e um som de música eletrônica abafada. As batidas fortes e ritmadas por vezes simulavam socos no estômago da ninja acostumada com o silêncio.

Se assim optasse, Kyouko alcançaria para além daquela porta um banheiro, julgando pelos itens e pelo mau cheiro. Não há espelhos, somente um par de pias e dois pares de cabines, paredes dividindo espaço entre sujeira impregnada e pichações de vários tipos. Inclusive, a primeira cena que Kyouko via ao chegar nesse lugar era um tanto traumática: um homem, aparentemente jovem, sentado no vaso, olhando para o teto. Os braços pendiam para baixo, pernas jogadas à frente, boca entreaberta e escorrendo saliva. Kyouko pode não ter a noção técnica do que estava acontecendo por ali, mas era completamente possível presumir pelas evidências jogadas pela cabine: pequenos cristais azulados originários de um saquinho caído logo abaixo da mão direita. Fora essa presença, o local estava vazio. Não havia porta entre o restante do local e o banheiro, logo o som estava mais alto a partir dali.

Avançando pelo portal, a iluminação ficava mais precária, juntamente com o espaço disponível para caminhar. E ali, Kyouko percebeu, sem nenhuma gota de dúvida, o tipo de lugar que estava.

O espaço todo se abria em um tipo de boate com pouco espaço disponível para qualquer coisa. À direita, caixas de som empilhadas escondiam uma figura que talvez se associasse a um DJ. Logo abaixo, em um espaço de apreciação, por assim dizer, homens sentados em estofados dispostos em círculo dividiam espaço com mulheres seminuas, servindo de damas de companhia para eles, enquanto uma outra mulher desenvolvia uma apresentação de pole dance no centro dessa roda luxuriosa.

À esquerda, um grupo de pessoas, falando alto e fazendo gestos rudes, se amontoavam em um tipo de bar minúsculo, virando doses de bebidas de cores diversas e sendo, claro, servidos por outra mulher seminua, sendo esta um pouco fetichizada por assim dizer, já que vestia um tipo de maiô que simulava um terno que deixava seus seios à mostra, e uma gravata borboleta presa ao pescoço como uma coleira. Nenhuma dessas pessoas observava ou sequer percebia Kyouko e sua Weavile por ali. De fato, enquanto a ninja permanecer se esgueirando pela multidão sem esbarrar com mais força em ninguém, ela provavelmente passaria completamente despercebida. À frente, depois de passar por todo aquele trajeto que poderia ser perfeitamente um dos infernos de Dante, havia um pequeno corredor mal iluminado. Dois homens engravatados levavam, de modo bem coercitivo, o sujeito que Kyouko cercou no beco. Um deles aperta um botão na porta de metal, revelando-a como um elevador. Eles simplesmente atiram o sujeito para dentro do bloco de metal e pressionam o botão para algum andar, já que a porta metálica se fecha, tirando-os de vista.                  
 

Como duas perfeitas felinas se esgueirando por meio daquela pequena e sufocante multidão non-grata, Kyouko e sua Weavile iam, passo a passo, na direção do estreito corredor mal-iluminado findado no misterioso elevador. Não havia mais nenhum segurança ou vigia perto da porta de metal, o caminho estava completamente livre.

Porém, nem tudo eram flores. Enquanto faziam a passagem por entre as pessoas, um pouco da bebida de um dos “frequentadores” do local caiu sobre o volumoso colar de penas de Weavile. Aquilo era um tipo de insulto que doía forte e fundo no ser da felina. Kyouto percebeu, e ao se virar notou o olhar raivoso dela para o causador daquele problema. Seus olhos eram pequenos, estreitos, e de sua boca saíam os famosos sons de “hsssss” de um gato querendo encrenca! Além disso, um dos senhores da parte central, visivelmente bêbado, caminhava na direção do banheiro de forma disforme e com pouca janela de previsão. O desafio de passar despercebido por aquele lugar estava cada vez mais complexo. Faltava tão pouco para alcançar o elevador…                  
 

Não querendo perder tempo ou correr risco, Kyouko recolhe sua parceira, logo depois de limpar suas penas da melhor forma possível. A Weavile percebeu, pelo olhar de sua mestra, que havia falhado e seu olhar mudou do estreito feixe vertical para algo mais arredondado, com traços de pesar. O feixe de luz recolhe a felina e agora a ninja estava sozinha.

Com aquela quase situação desastrosa resolvida, era hora de lidar com a segunda. E dessa vez, Kyouko teve de improvisar. Acontece que há um princípio básico que une artes marciais e dança: ritmo. Mesmo não tendo muita ideia de como “sentir a música”, ela usava a batida e os elementos para conduzir seu corpo por aquele caminho complexo. De fato ela teve “treinamentos” envolvendo facas, lâminas e outras coisas dolorosas, e aquela lembrança vinha bem a calhar. Esgueirando e trocando passos, ela supera os obstáculos, inclusive o maior deles: o bebum descontrolado. Logo que conseguiu, ela já estava diante do elevador, seu objetivo principal. A porta metálica se abre com o toque no grande botão, e após alguns instantes, a caixa suspensa aparece diante da ninja.

Era um elevador comum, sem muitos segredos. Não havia andares inferiores a partir daquele ponto. O elevador seguia até o décimo andar somente, mas pela visão externa de Kyouko, o prédio era muito maior que aquilo. Talvez esse elevador fosse um tipo de elevador de serviço, não indo até o final do prédio? Talvez. Havia do lado um tipo de painel com inscrições, algum tipo de instrução para quem utilizasse aquele elevador. Conveniente? Talvez. Os andares do segundo ao décimo nono seguiam com o título “Armazém”. O primeiro, que era onde a ninja estava, não era listado. Finalmente, o vigésimo andar possuía o título “Lounge”.    

Imaginando que teria mais chances com uma abordagem silenciosa pelas escadas, Kyouko aperta o botão do nono andar, listado como um dos vários “armazéns” daquele prédio. De fato é muito estranho para um prédio ter tantos andares reservados para isso, mas muita coisa não faz sentido naquela cidade. A porta metálica se fecha, e o mecanismo começa sua subida.

Aos poucos, o som alucinante do andar térreo vai ficando para trás, e um silêncio estranho e incômodo impera. Logo o elevador chegou até o nono andar e a porta novamente se abriu. Diante de Kyouko, a cena que se abre é nova, extremamente desconfortante e desconhecida para a ninja.



Era somente um grande andar aberto com divisórias em compensado. Pequenos nichos abertos limitados apenas por um tipo de lona transparente eram alojados nos cantos, e grandes cabos de força cruzavam o andar de ponta a ponta. Aparentemente não havia presença humana naquele andar, mas ele não estava desabitado. Dentro dos nichos de lona, grandes maquinários operam algo ainda desconhecido pela ninja, extraindo algo de vários Pokémon. Um Weezing extremamente debilitado parecia estar nas últimas. Um grande pokémon róseo flutuante, cercado por uma névoa roxa, mal conseguia se manter respirando dentro de uma redoma. Um Vileplume pálido, aparentando estar dias sem ver a luz do sol, olhava para o alto, desiludido. Todo o conteúdo extraído destes e vários outros Pokémon era recolhido e depositado em grandes galões metálicos. Nos cômodos cercados por compensados estilo empresarial, era possível ver grandes caixas com aquele mesmo cristal azulado que a ninja viu nas mãos do morinbundo dentro do banheiro.

Atravessando todo o andar e tomando a direita havia um pequeno corredor que dava para uma porta. Além desta, lances de escada que subiam para o próximo andar. Assim que Kyouko chegar até esse lance de escadas, ela ouvirá uma nova música, dessa vez bem mais agradável, mais suave, mais tolerável.