(021) — Midnight Rain

Quando Karinna se ofereceu para comprar outra blusa, o homem já arregalou o olhão e ficou um bocado assustado:
- Não, que isso, só lavar e ta nova - Disse, dando um risinho besta e completamente sem graça.

Ninguém nunca havia lhe oferecido um favor em tom de obrigação por tão pouco. Depois disso, deixou que a loirinha falasse sem a interromper, olhando-a nos olhos a cada frase e assentindo com a cabeça de vez em quando, mostrando que estava não só compreendendo, como também concordando.

Ele realmente achou que ela falaria por horas, mas logo mais ela voltou a falar sobre sua camisa e ele, mais uma vez, deu de ombros e reforçou:
- Deixa disso!! - Foi gentil - Agora, sobre o que disse... você não acha que... sei lá - Deu um suspiro. Ele estava pensando em como melhor aconselhar ela, dizer para ela como agir e tudo mais, mas no fim, decidira que falar para uma moça como agir era de péssima escolha. Por isso, engoliu a seco e continuou a falar o que pensava, mas sem induzí-la a nenhuma atitude - Que é um pouco de exagero? Quer dizer, pode ser que eles fizeram isso mesmo, mas é uma Dragonite. Acho que eles não fizeram por mau, deve ser só olhar de curiosidade mesmo... eu mesmo nunca tinha visto um.

A sutileza em que um homem opta por não dizer a você o que fazer mas sim o que pensar é ótima, né?! Pelo menos esse ai parecia realmente inocente, coitadinho. Apesar de estar bem forte na cabeça dele que Ivy não foi assediada e sim cobiçada; o que pra ele eram coisas bem diferentes.
- Sei lá, eu ficaria me achando todo se tivesse um pokémon tão forte que todos quisessem parar pra ver...

Ao ouvir a resposta claramente explosiva de Karinna, o homem deu para rir. Sei que estamos numa discussão dessas sobre rir-da-raiva-alheia no Discord, mas não foi só por isso que ele riu: ele riu por não achar que era sério. Quando Karinna saiu mais fumegante do que antes, ele deu um passo para trás e disse um "wow" meio falso, parecendo uma espécie de cartum. Por fim, completou com um "vai com calma, gatinha" e cessou o riso, acalmando o riso frouxo e o transformando em um sorriso um bocado estático.

O que era bem... artificial, sabe?!

Não sei se Karinna o olhou por um tempo, mas sua Dragonite sim. Ivy até demorou ouvir o comando de sua treinadora e ficou ali, estática, um pouco hipnotizada com o semblante parado daquele homem.

Quando sua treinadora virou o rosto para seguir sua viiagem até a porta, repararia que a tal da porta-de-saída não estava mais lá, mas sim o mesmíssimo bloquinho de bilhetes que outrora usou para escrever seu desejo.

Agora, lhe darei um minuto para se localizar, Karinna.

Atrás de você, há um refeitório cheio de burburinhos animados. Do seu lado esquerdo, uma fila que se movimenta bastante rápido. À direita, uma mesinha com bloquinhos e canetas, já à frente, uma velhoca de sorriso tão estático quanto Luís, com um Delibird animado no ombro, que acabara de receber seu saquinho com os desejos mais profundos de cada um ali.

Repentinamente, Delibird deu um piu esguichado, quase um ruído de porco. O som era tão rouco que fez com que muitos ali acordassem repentinamente para a vida e parassem de olhar as telas iluminadas de seus smartphones. Uma das pessoas que acordou de seu transe foi Karinna, que agora podia perceber melhor que não passara um segundo sequer após ela largar o papelzinho dobrado dentro de um saquinho natalino.

A velhaca, percebendo que o brilho nos olhos da moçoila voltou a sinalizá-la um "online", tocou em seu esquerdo ombro com a palma da mão. Demonstrando calma, disse:
- Desejo realizado minha querida - Este era um tom bem alto, mas o próximo era quase um cochicho - Tu preferiu acreditar em si... não foi? - Uma segunda mão alcançou o ombro direito de Karinna e deu tapinhas leves e continuou - As vezes a gente só precisa acreditar em nós mesmos quando temos certeza... quando não sabemos das coisas, a dúvida é quase sempre o melhor caminho.

Deu um suspiro profundo e apertou de leve as escápulas da garota. Por um instante, pareceu que ela ia sacudir Karinna, mas não o fez:
- Agora vá, faça um pedido sincero... um que você realmente precise - Neste momento soltou a garota, indicando que ela pudesse ir - E o Luís nunca faria aquilo... ele é um bom menino.

"Só passou por mim mais cedo que tu", pensou a velhinha. Estranhamente sua voz podia ser ouvida por dentro da Karinna, como se ela mesma estivesse falando aquilo e a vibração das suas cordas vocais fossem captadas por dentro de seus tímpanos. No mais, a moça poderia olhar em volta e ver que Ivy já estava no sétimo ou oitavo Cupcake, ficando completamente impanturrada. Ninguém, absolutamente ninguém, a sua volta estava cobiçando por sua pokémon e elas estavam num ambiente um bocado seguro e divertido.

Os burburinhos e as risadas continuavam.

OFF: Preciso pensar ainda o que fazer com seu pedido, então toma um post filler pra contar post pra pegar o item mas não desenvolver mt a história QQQ. Bom que você muda box também.

A expressão boquiaberta - mas não irritada - de Karinna fez a velhaca abrir um sorriso sincero, ficando orgulhosa por tê-la ajudado num momento em que ela precisava. Talvez - e apenas talvez - esse foi o ponta pé necessário para que a garota saísse daquele centro e fizesse algo "de útil", sabe?! Algo que deixe o bolsonaro orgulhoso, como sair pra rua, gastar dinheiro, contaminar os outros com covid, essas coisas.

"Economia não pode parar, taok?", não é depressão que vai parar você.

O lado bom é que estava - literalmente, geograficamente e metaforicamente - no Centro da cidade. Por ali, não faltava coisa pra fazer: museus, sorveterias, restaurantes, atrações temporárias (como circos, parques de diversão móveis e festivais de comida), teatros, cinemas e... bem... aquilo que talvez Karina mais precise e menos queira: psicólogos. O polo de saúde da cidade ficava a poucos metros dali. Se pesquisasse no google, acharia o mesmo psicólogo que a própria Christina ia de-vez-em-sempre, quando não estava desanimada ou desinteressada demais.

Enfim, uma gama de opções.

Andando nas ruas, trocando cheques Karinna chega a tão (des)esperada vendinha de festival natalino. Ali, fizeram como fazem em alguns shoppings a céu-aberto: uma rua comum, porém revestida com paralelepípedos novos, coberta por uma tenda nova, reforçada com forros vermelhos e com algumas lâmpadas penduradas, numa gambiarra escondida por trás do forro.

Nas pilastras destas tendas, papéis bonitos e enfeites de natais formavam o esverdeado da decoração. Na lateral esquerda haviam barraquinhas comuns, que usaram de garagens locais para fazer seus depósitos, enquanto utilizavam de containers soldados e customizados para formar suas vitrines, cozinhas e lojinhas.

Na lateral direita, era um bocadinho diferente: kombis de docerias. Paneas Kombis de docerias. Isso ocorria porque as lojinhas eram muito mais simples, tendo apenas um "tipo" de doce e modificando apenas o saber. Kombi do brownie, do cookie, do sorvetinho, do churros, da torta, do bolo de pote.

O engraçado era que estava um tantinho vazio. Quer dizer, parecia meio óbvio que de manhã não é um horário de movimento em feirinhas de comida: a maioria ia para lá depois de um trabalho chato. Ainda mais em Mu! Cheio de fábricas! O pós-horário-comercial era a coisa mais importante da cidade, e o pós-trânsito também. Por isso, não havia muito o que enfrentar: sete ou oito mesas, colocadas no meio da rua, eram ocupadas. Havia um casal pedindo picolés e um garoto um bocadinho reconhecível pedindo algo na loja de bugingangas, que ficava ao lado esquerdo.

Descrevendo-o um pouco melhor, era um caucasiano de porte atlético, cabelos negros e bastante alto. Como estava com os ombros sob o "balcão" improvisado da dona, olhava diretamente para o fundo do container, sendo impossível ver sua face ou sua expressão. Seus braços estavam juntos sobre a construção improvisada.

Um saco sem fundo muito lindinho essa Ivy. Era cupcake cá, cookie lá, um bocadinho de coisas aqui e mais um tanto lá. Pra ela, tudo tava muito bom, mas sempre tinha como melhorar. Ela parecia um enorme cachorro doméstico, que acaba completamente regulado pela hora de comer, que na maioria das vezes, era quando o dono conseguia alimentá-lo ou não. No caso da Dragoa, as coisas ocorriam de forma semelhante, só que com um extremo contrário bem exposto: sua regulação parecia ser baseada em quando Karinna não a alimentava, ou seja, seu metabolismo mudava quando ela, finalmente, parava de comer.

Era o não que inaugurava uma fase nova no ciclo biológico da gulosa, que agora começava a sentir uma pontadinha de sono pós-refeição. Claro, isso ia passar bem rápido quando seu corpo começasse a digerir (de novo) aquela glicose toda. É engraçado como (e quanto) essa regra-de-exceções fazia com que o metabolismo da menina fosse mais rápido do que deveria.

Ou você acha que catabolizar esse tanto de carboidrato é fácil?

Enfim, enfim. A garota parou em algum canto para analisar a figura atlética de canto de olho. Não sei dizer se ela sentou em alguma das mesas, mas se não o fez, Ivy fez por ela. Sem entender muito bem o que sua treinadora estava fazendo, deu um bocejo enorme, puxou uma cadeira da mesa mais próxima e sentou com desleixo força. Incrivelmente, o móvel não cedeu ao seu peso todo e ela simplesmente se esbarramou sobre a mesa, esperando Karinna fazer seja lá o que estava fazendo. De quando em quando, bocejava. Usou seus bracinhos para tapar os olhos da luz e ficou ali, parada, esperando a leseira passar.

Enquanto isso, Karinna procurava um bom indicativo sobre aquele homem ser um tal de Kyle. Quer dizer, ela não deixou muito claro que era esta sua suspeita, mas eu consegui entender. Aos poucos, o menino foi mudando suas expressões levantando os braços e deixando outras partes a mostra. Cada pecinha adicionada deixava mais evidente que sua suspeita era um acerto. Por fim, ele pareceu desistir da "pechincha" e deu dois tapinhas no balcão irritado, virando de imediato e dando as costas para o lojista.

Ali, seus olhos cruzaram com o de Karinna e imediatamente ele congelou.

A mão no bolso de sua calça continha um furto. A outra estava completamente livre e, aos poucos, foi se levantando para dar um aceno a moça, como quem dizia "oi" com as mãos, de forma extremamente nervosa. Pelo constrangimento, ele não se aproximou da menina de imediato.

Quando cogitou fazer, uma voz gritante saiu de dentro do container: "FILHO DA PUTA, TU TA FUDIDO" e um homem com uma faca saiu de trás da lojinha, contornando o container. O garoto, de imediato, mudou sua expressão para um "ih, fudeu", deu as costas para Karinna e começou a correr. Ele gritaria "TE VEJO DEPOIS", mas a garota ainda era uma mulher muito desconsertante a ele e não teve tempo suficiente para pensar em fazer isso naquela situação.