[04] How does a moment last forever?

Nesses meses em que estive acompanhando minha treinadora, foram poucas as situações de vida ou morte em que estivemos. E, quando aconteciam, eram quase sempre fruto de acidentes ou de alguma brincadeira de muito mau gosto. Nossos quase-algozes eram encrenqueiros, sim, mas não perversos. Contudo, parece que Kathryne não teve a mesma sorte… embora a menina tentasse disfarçar, a voz dela pareceu bem angustiada ao tocar nesse assunto. Memórias ruins, ela disse…

Eu não sei que tipo de pessoa poderia querer fazer mal àquela menina, dócil como ela era. Já vi tantos humanos, porém nenhum cruel a esse ponto. Aquele caçador na floresta foi o primeiro típico “vilão” que encontramos… é uma face da humanidade que ainda não vi direito, mesmo sabendo que ela existe. E não quero nem pensar no que poderia ter acontecido à minha treinadora se tivéssemos encontrado alguém assim nos nossos primeiros dias de jornada… será que eu seria forte o bastante para protegê-la? E, mesmo se fosse, que tipo de trauma uma experiência dessas poderia deixar nela? Acho que é melhor nem pensar nisso…

- Sinto muito, Kath… sei que existem humanos capazes de fazer coisas horríveis, não queria que você tivesse encontrado um deles. - Sem saber ao certo como acalmá-la, apenas coloquei uma mão sobre o ombro da menina, tentando com isso passar alguma segurança a ela. Yoshiro teve uma ideia parecida: decidindo que a vontade de confortar a amiga era maior que sua vergonha, a Mudkip subiu no ombro da loira e acariciou o rosto dela com o seu próprio, sussurrando-lhe algo que ela com certeza não entendeu. Provavelmente era o máximo que a anfíbia conseguiria fazer ali, sem erguer uma das patas e correr o risco de perder o equilíbrio. - Você é uma das treinadoras mais fortes que eu já conheci, Kathryne. E não estou falando isso por causa dos seus Pokémons. Ter passado por tanta coisa e ainda ser corajosa como você é, vivendo pelas suas próprias normas apesar de toda a dificuldade… isso é admirável. Você é muito melhor do que pensa, de verdade. E aposto que aqueles amigos sobre quem você comentou concordariam comigo. - Sorri para aquela menina, a qual em tão pouco tempo ganhou meu completo respeito. Ser sensível e chorar com facilidade não é nenhum sinal de fraqueza, e aquela humana tinha me provado isso.

Depois dessa pequena conversa, algumas coisas aconteceram em sequência. A loira me avisou que meu peso de papel era na verdade um item de treino (essa coisa podia ter vindo com um manual de instruções, não?); um crocodilo resolveu nascer só pra causar baderna e descobrimos que a magnífica praia a qual encontramos era na verdade fruto da imaginação de alguém ainda mais perturbado da cabeça que nós. Acho que essa última foi a mais preocupante. Assim que o menino tirou seus olhos do horizonte, todo o ambiente mudou de forma, como uma ilusão sendo quebrada. E de ilusões eu entendo bem. Já vi o suficiente delas na vida pra saber o quão persuasivas são… eu apostaria minhas barbatanas como esse humano não acreditaria se falássemos que nada do que ele está vendo é real. Entretanto, que escolha temos, além de tentar?

- Não, não tem modelo nenhuma aqui. A minha treinadora é até meio bonitinha mesmo, mas não é pra tanto… - Comentei em tom distraído, olhando as roupas que tinha surgido magicamente no lugar das outras. Não foi surpresa nenhuma sentir uma patinha bater no meu pescoço pelo que eu tinha dito, seguido por um “mud!” emburrado. O sorriso no meu rosto aumentou e dei uma piscadela para a anfíbia, mostrando que era só brincadeira. - Não faça essa cara, eu te acho bonita sim… para uma humana. Mas se quiser saber, você ficou muito bem como um Mudkip. - E ficou mesmo, tá uma gracinha. Mas é bom que ela não se acostume, eu quero meu corpo de volta.

Nunca entendi muito do padrão de beleza humano… francamente, pra mim elas estavam mais bonitas com as roupas enlameadas mesmo. Qual o Mudkip que não ama lama? Talvez agora Yoshiro, porque eu acho que nem a magia de Jirachi seria capaz de deixar essa menina menos fresca… bem, mas não é hora de ficar pensando nisso. Ainda tínhamos um trabalho urgente a fazer, como Kathryne tinha ressaltado. Ter aquele garoto e suas ilusões por perto seria problemático. Não acho que ele tenha muitas respostas para nos dar, mas tomara que pelo menos não atrapalhe nossa busca.

- Tem toda razão, Kath, melhor agirmos rápido. Eu só preciso fazer uma coisinha antes… - Andei para o lado do menino e sentei-me ao lado dele sem muitas cerimônias, colocando minha mão sobre seu ombro enquanto tentava falar no tom mais franco possível. - Olha, eu não sei o que Jirachi fez com os seus olhos, mas parece que afeta os nossos também. Será que você pode virar pro outro lado enquanto a gente vasculha a praia, por favor? Não vamos te incomodar, é só não olhar na nossa direção.

Ao me sentar, deixei a mochila encostada nas minhas pernas, porém um grunhido vindo de dentro dela lembrou-me de que isso não era uma boa ideia. Fechei o zíper o melhor que pude e afastei o objeto de mim, para logo depois dirigir-me a Kathryne e Yoshiro. - Ei, Kath, pode pedir pra Alya dar uma olhada dentro da água, e o Venger por cima? Se não tiver ninguém perdido lá, eu quero tirar esses entulhos com um Surf. Não posso deixar o mar sujo assim, sabe? Não sou mais um aquático, mas ver isso ainda me deixa nauseado. E vai fazer mal para os Pokémons que vivem nele.

Eu já esperava que o menino fosse ficar confuso com a conversa, mas ele ao menos concordou em não olhar na nossa direção, o que era ótimo. Dei uns tapinhas de leve no ombro dele, como os humanos costumam fazer pra parabenizar alguém, e agradeci. Assim que os olhos do garoto desviaram-se da praia, um fraco calafrio percorreu meu corpo, como se eu pudesse realmente sentir a energia que sustentava o desejo ser transmitida de um lugar ao outro. É, Jirachi realmente caprichou no que fez aqui…

- Acho que não vai funcionar, Kath. - Comentei quando a garota tentou mostrar uma foto da praia ao rapaz. A ideia até que era boa, mas eu tinha certeza de que, no momento em que ele olhasse para a tela, enxergaria apenas a linda praia de sempre. As pessoas só veem o que querem, e o desejo levou isso a outro patamar. No entanto, como a loira parece querer explicar ao treinador que ele foi enganado, acho que posso tentar colocar algumas verdades na cabeça dele também. - Lamento ter que dizer isso, mas ela está certa. Os desejos que Jirachi realiza só causam mais bagunça. Acabamos de nos separar de uma amiga, porque ela pediu pra falar com Pokémons e agora nenhum humano consegue entender o que ela diz. Você pediu pra trazer a praia de volta ao normal, mas essa imagem bonita só existe na sua cabeça. Sei que isso deve ser difícil de ouvir, mas… é a mais pura verdade, sinto muito. Jirachi aprontou com todos nós.

Tentei usar um tom mais afável ao falar, o que não era difícil com a voz da minha dona. Talvez eu não tenha sido tão jeitoso com as palavras que escolhi: Yoshiro com certeza faria um trabalho bem melhor, ela saberia consolar o rapaz após uma revelação tão dura. Sei que deve ser uma desilusão enorme para ele, o coitado já estava até feliz achando que era um escolhido pelo lendário pra salvar o dia ou coisa do tipo, mas não podemos passar muito tempo conversando enquanto há Pokémons perdidos por aí.

Ergui-me, pegando com cuidado a “minha” mochila e forçando um sorriso tranquilo para o humano. Não sei se isso iria acalmá-lo, porém não custa tentar. - Nós temos uma missão a cumprir, ainda. Se quiser, espere um pouco aqui e depois voltamos para lhe buscar. Talvez tenha um jeito de desfazer seja lá o que Jirachi fez contigo… na pior das hipóteses, faça uma visitinha à Sabrina, uma tal de líder de ginásio dessa região. Se ela é capaz de me trazer de volta ao normal, e nem queira saber o que esse lendário descarado fez comigo, deve poder dar um jeito em você também.

Após acenar uma rápida despedida, andei com Kathryne pela beira da praia, em busca de qualquer náufrago azarado que ainda estivesse por ali. Não encontramos muita coisa. A loira logo colocou seus Pokémons para ajudar na busca, todavia, eles ainda não tinham trazido notícia nenhuma. Ao invés disso, nossa melhor pista foi um conjunto de pegadas que se dirigiam para longe dali. Espero que não tenham ido muito longe, pois não vai ser tão fácil segui-los fora da areia fofa...

- É, deve ser algum pássaro mesmo… - Eu não sou o maior entendedor de pegadas, mas não tem muitas outras explicações para esse rastro ter simplesmente sumido. Mesmo assim, tentei levantar a tábua e olhar em volta dela, só por garantia. - Se a Alya e o Venger não acharem ninguém, é melhor irmos logo atrás desse grupinho aqui, antes que ele vá muito longe. E quanto ao mar… ei, Yoshiro, você consegue usar o Surf?

A Mudkip, que até então estivera andando ao meu lado, parou ao ouvir a pergunta. Fitou o mar por alguns instantes com um semblante bem inseguro, para logo depois fechar os olhos e tentar concentrar-se. Demorou uns dez segundos pra ela notar que não estava dando certo. Por fim abriu os olhos e balançou a cabeça em negação, dizendo alguns “mud mud” que soaram como um pedido de desculpas.

- Tudo bem, mas não é difícil. Não quer tentar de novo? - A ideia não pareceu animá-la, porém tentou. Dessa vez, notei que a pequena estremecia toda vez que uma onda mais forte colidia com os restos do navio, e sua respiração parecia meio alterada. Talvez ela não estivesse fechando os olhos para se concentrar melhor… mas sim para não precisar ver a imensidão do oceano à sua frente. - Ah… desculpa, Yo, eu esqueci. Esse lugar não tá te trazendo memórias muito boas, né? Não vamos ficar muito mais tempo aqui, relaxe. Depois Sienna vai dar um jeito nessa bagunça, com certeza…

Ok, como eu ia adivinhar que essa menina ainda tem medo do mar? Ela é um Mudkip, literalmente respira debaixo d’água! Esse é o último temor que alguém espera ver em um aquático. No entanto, como posso dizer isso a ela sem soar muito rude…? Deve ser melhor eu ficar quieto. Afinal de contas, quem quase morreu afogado depois de ser jogado pra fora de um navio não fui eu…

Peguei a anfíbia nos braços, e com isso ela pareceu mais tranquila. Ótimo, porque ainda temos um caminho longo pela frente… só falta descobrir se Alya ou Venger tiveram sorte, pois caso contrário já temos uma ótima pista para seguir.

É, aquele humano definitivamente não queria nos dar ouvidos. Não sei se é muito seguro deixar para trás alguém que não pode confiar nos próprios olhos, mas ora, o que se há de fazer? Não posso ajudar quem não quer ser ajudado, e o menino provavelmente tinha Pokémons para defendê-lo caso algo acontecesse. Quando esse desejo começar a causar dor de cabeça pra ele, espero que pelo menos se lembre de ir visitar a Sabrina… tomara que Jirachi não tenha aprontado com muita gente, se não essa coitada vai viver com o ginásio lotado.

Mesmo com as ilusões fora do nosso caminho, ainda havia coisas bem estranhas acontecendo ali. Pegadas que levam ao nada e tábuas que lhe fazem chorar ao tocar nelas, por exemplo. Yoshiro pareceu bem surpresa ao ver as lágrimas escorrendo pelo meu rosto - não mais surpresa do que eu estava, garanto -, e tentou secar algumas com suas patinhas. Ok… o que diabos tem nessa madeira? Eu não sabia se devia esbravejar, jogar a tábua longe ou apenas cavar um buraco na areia e enfiar meu rosto dentro, só para poupar-me da vergonha de ser visto assim pelos outros.

Quando eu já estava quase optando pela terceira opção, notei que Kathryne também tinha começado a chorar sem nenhum motivo aparente. Ótimo, pelo menos não vou passar por essa humilhação sozinho. Olhei para Yoshiro, porém ela parecia normal, apenas assustada pela nossa atitude. Seja lá qual for a maldição dessa tábua, não a afetou. Aliás, se eu tivesse encarado a loira com um pouquinho mais de atenção, talvez notasse as pegadas que se formaram na direção dela, porém minha vista estava tão embaçada pelas lágrimas que eu nem me atentei a isso na hora. Na minha cabeça, aquilo só podia ser uma pegadinha de muito mau gosto… no entanto, feita por quem?

A resposta veio quando um réptil azulado se materializou ao lado de Kath, segurando-se na menina com um semblante quase tão choroso quanto o nosso. Certo, achamos o responsável por isso... todavia, ele não parecia querer zombar de nós, estava apenas com medo. Deve ter passado por maus bocados, esse baixinho...

- Eu te derrubei? - Ao ver o olhar assustado com o qual aquele pequeno me encarava, as peças começaram a se encaixar na minha cabeça. As pegadas que terminavam sem explicação bem em cima da madeira, o fato de Venger não ter visto nenhum voador nas redondezas, a habilidade dele de ficar invisível… algo me diz que eu fiz esse coitado levar uma queda. - Olha, desculpa por ter virado a sua tábua… mas era meio difícil eu adivinhar que você estava em cima dela, sabe?

Era bem difícil falar naquele estado, todavia, fiz meu melhor para não soar patético demais. Não foi tarefa fácil, com essa voz fanhosa e falhando a todo momento... Pra piorar, eu não precisava ver meu reflexo na água para saber que o rosto estava vermelho como um tomate, Yoshiro sempre fica desse jeito. O máximo que pude fazer foi cobrir parte do rosto com o cabelo da minha dona, em uma falha tentativa de preservar o pouco orgulho que me restava. - Parece que ele está com medo de mim, Kath… acho que é melhor você lidar com ele.