[Villain] – Lilycove City –

Poucas coisas são tão drásticas quanto a perda de si própria para um mar desconhecido de angústias e sangue.

Flutuando nas vísceras de um líquido viscoso cujas origens repousavam em sua íntima ignorância, a ruiva jamais sequer imaginaria que compreenderia tal sensação da maneira mais física possível. Descascada como uma cebola, a ânsia de berros sofridos era sufocada pela impossibilidade de que quaisquer palavras, mesmo sons, escapassem de uma garganta que em pouco tempo não mais existia.

Iam-se suas digitais, as unhas, as pontas dos dedos, os tendões e as articulações.
Partiam-se os ossos, a carne dos membros, os músculos e a pele que os recobria.
Rasgavam-se os órgãos, um a um; Estômago, fígado, rins, coração.
Esfacelavam-se, então, os segredos repugnantes: Gordura, sangue, bile, saliva - pensamentos sórdidos, e também su'alma.

Fragmentos, partículas, estilhaços.
Defasados, perdidos, destruídos.

Não lutou.
Se lutasse, não saberia para quê, como, por quê.
Ora, mas e não era patético que se perdesse de maneira tão simplória, rítmica como melodia, após tanto tempo batalhando (em vão, agora ponderava) por uma sobrevivência sem sentido e significado, simplesmente por um desejo selvagem, inconsequente e inconsciente de estar?

"Você pode vencer,", pulsaram-lhe no (des)íntimo as palavras.
"mas não assim."

Não assim.

Era como se houvesse sido transformada em uma estranha e simplória bolinha de pingue pongue. Puxada de um lado para o outro, outrora ao vazio e, então, repentinamente, à "liberdade" de um universo caótico. A pancada em seu estômago - ele existia? - era violenta, bruta, exigindo sua atenção e presença, titereando-a como uma marionete quebrada que há muito não se desprende dos próprios fios. Tanto que a respiração bagunçou-se por completo quando o corpo foi arrastado para fora da lama férrica que a fagocitava, os pulmões sufocando momentaneamente no ar puro, ou tão puro quanto o era,  os berros de Navi ricocheteando em sua cabeça e tomando as rédeas que, por um momento, ela havia abandonado.

Não assim.

Não assim.

Os pés afundaram quase que imediatamente na terra quando o corpo sentiu o repuxar teso ao redor do seu pescoço, arrastando-a como um animal enjaulado. Recusou-se em seguir; Ora, não teria motivo para se permitir fazê-lo com tanta facilidade - ao contrário da lama barrenta que a fazia afundar ainda mais a cada movimento que arriscava, ali poderia se dar ao luxo de lutar contra a correnteza, tal como jamais ousaria fazer em meio ao oceano, se parasse para pensar.

Entre os tantos momentos caóticos dos quais participava, arriscar comprar um "quem cala, consente" não estava entre os seus planos para uma dimensão mórbida e paralela. Apesar de precisar de alguns segundos para reestabelecer os próprios sentidos, bastou um balançar rápido de cabeça para que os orbes acinzentados focassem na entregadora puxada pouco a pouco pelo aparente responsável daquela dimensão - os ombros retesaram, o canto dos lábios se torcendo diante da ousadia da criatura; Entretanto, quando as pupilas finalmente pousaram na sombra amarelada que tentava fisgar a moça há pouco resgatada, um calafrio insone percorreu pela linha de sua coluna, ácido, nauseante. A garganta se apertou, os dentes pressionaram no interior das bochechas, o ar escapou dos próprios pulmões mais uma vez - oh, oh.

...Por que aquilo parecia tão familiar?

— ...Navi, eu- — A voz falhou ao se dar conta das garras que escapavam das outrora mãos do sarcófago; O cenho se franziu, os ombros encolhendo em resposta à aparência exótica do animal. A reação quase que imediata foi retirar a pokédex e apontar o visor para o espécime, certificando-se de que não estava completamente surtada e, hah, foi um incômodo inevitável aquele que pulsou em suas veias ao se dar conta das diferenciações nos movimentos do fantasma. — ...Ugh. Navi, que tal um Will-o-Wisp para esquentar as coisas? — Indicou, balançando a cabeça na direção do espécime amarelado oposto: Precisava que ele largasse as correntes se quisesse uma batalha mais despreocupada; Bendita a hora que trouxera aquela mulher consigo, huh. — Já que está preparado... Use também um Shadow Claw!

...Espero que compreenda, dócil raptor.

Gray.

Foi de maneira quase imediata que o cenho se franziu diante das palavras confusas do psíquico à sua frente. A dificuldade em encará-lo pulsava, vil, por todas as suas veias: E não só por suas afirmações e maneira com a qual a adversava, mas simplesmente por seu singelo ser. Então, influenciadas pelas rudes palavras do espécime oponente, as questões afloravam mais e mais em sua cabeça, especificamente pela menção do especialista que há pouco havia encontrado - ora, por qual diabos de motivos ele era mencionado de maneira tão aleatória, em uma dimensão tão divergente à qual vivia e sobrevivia?

— ...Ugh. — Murmurou diante do erro do fogo fátuo arremessado pelo sarcófago, os ombros encolhendo enquanto a cabeça balançava e tentava espantar os pensamentos que, naquele momento, eram inúteis; Quer dizer, independente da resposta na qual podia chegar ao pensar sobre tudo aquilo, não seria muito útil se acabasse simplesmente destruída sob as mãos amareladas do narigudo hipnotizador? — ...Insista. Duplo Shadow Claw. — Instruiu, simples, só.

Não podia ser tão difícil assim...
Né?

Era com certo assombro, sinceramente, que a ruiva observava as investidas violentas realizadas por Navi (e, para falar a verdade, também com certo prazer). Ora, tinha bem a consciência de que seu fantasma não era o mais pacífico dos monstrinhos mas, hm, observar a maneira como açoitava o adversário com quatro garras sem a menor pausa ou preocupação era, digamos, um pouquinho... Inesperado, até. Não teria como não ser, levando em consideração que ainda não estava acostumada com o nível de poder que o animal trazia dentro de si mas, ah, não era como se estivesse reclamando. Longe disso, na verdade: Se alguma coisa, tudo o que aquilo trazia era nada mais, nada menos que vantagem e alegrias contra seu sequestrador da vez.

Sabe, tinha que começar a chamar por número de fila para quem quisesse raptá-la para algum outro universo paralelo. Inclusive, se cobrasse passagem, provavelmente estaria rica àquela altura!

...Meh.

— Bem, não parece tão inteligente assim ter trazido a gente pra cá, agora, né? — Murmurou, balançando a cabeça com discrição. — O que diabos o Gray tem com tudo isso? — Deixou escapar, torcendo o canto dos lábios e volvendo a atenção para seu monstrinho. — Continue com os dois Shadow Claw. Aguente mais um pouco!

Chegava a ser cômica a maneira como, tal qual um espelho que se estilhaça ao menor e mais singelo contato possível, suas realidades distorcidas iam e vinham, violentas e atribuladas, mórbidas como as assombrações que há meses (anos?) a perseguiam e sórdidas como cada traço mais ínfimo dos demônios que agarravam-lhe e arranhavam-lhe a garganta em interação rudimentar de agressividade que a perseguia para onde quer que fosse ou sonhasse em ir.

Embora não devesse ter sido, foi em surpresa e de súbito que a ruiva reagiu à retomada da consciência, o corpo se debatendo nos primeiros segundos como se fosse um peixe fora d'água - e talvez o fosse, levando em consideração a ausência do sangue, do suor, das essências sombrias que puxavam e rasgavam sua pele, músculos, membros. Pesada e alterada, a respiração lutava para escapar dos pulmões, os dedos se apertando contra os lençóis da maca e os orbes acinzentados percorrendo todo o perímetro daquele lugar que, maldito ou não, descobriu se tratar de um simplório hospital.

...Mais uma vez, outra vez.

A ruiva teve de segurar um suspiro ao se dar conta de que, novamente, abandonava seus universos paralelos (ou seja lá o que fossem) para dar entrada em uma cama de hospital, enfermaria, sabe-se lá o quê. Parando para analisar, era um pouco estressante: Afinal, parecia que aquilo sempre acontecia para que a incômoda sugestão de esquizofrenia se fixasse em sua cabeça, deixando-a impotente, perdida, só.

...Precisava pensar.

Sem parar para ponderar se era a melhor escolha que poderia fazer, a primeira coisa que fez foi salta da maca, arrancando o soro do braço sem sequer cogitar pensar duas vezes. Então, olhou em volta, as pupilas em busca de seus próprios pertences: E, se estivessem por ali, planejava passar na enfermaria (quer dizer, deveria existir uma, não é?) para que pudesse recuperar seus pokémons, caso necessário...

Porque, sim.
Era aquela sua preocupação inicial.

Fazer o quê?