(021) — Midnight Rain

Bicho, sejamos sinceros aqui, vocês acham mesmo que com essa gritaria e ladainha toda, algum ser humano "ladrão" que estivesse aqui nessa casa não teria NOTADO a presença de Karinna e Kyle? Quer dizer, só se ele fosse SURDO, né? Ou tivesse o sono mais pesado do mundo, ou ainda fosse BEM BURRO.

Mas tudo bem, é aqui que as coisas voltam a ficar mais legais, se é que me entende.

Primeiro de tudo, paro um pouco desse texto para falar da lasanha. Sim, a bendita lasanha congelada sabor carne que podia muito bem ser dada para aqueles três dogs tristinhos. Ela, que já transpirava devido o calor de Mu Island, estava pendurada no ombro direito de Karinna, quase como uma bolsinha de lado. Olhando a situação, Kyle parou um pouco para pensar na mais óbvia solução que não havia pensado até então: uma tipoia. Sim, uma mísera tipoia teria lhe poupado de sentir um bocado de dor durante o dia todo.

Uma simples e idiota imobilização.

Porque ele pensou nisso agora? Porque... bem... quando Karinna lhe pegou pelo braço com pressa, tudo doeu. Talvez pela forma de passar por dentro do braço dele e puxá-lo de leve, como uma alavanca. Ele pôde, mais uma vez, se entregar para o barulho e dar um gemido escroto, além de virar um pouco para o lado, respondendo a pontada causada. Aquela dor estava muito pior do que a de mais cedo, sugerindo duas possibilidades: ou está forçando demais e fodendo completamente o machucado, ou o efeito da maconha ta passando. Ou talvez os dois, né? Porque não?

Bem, depois desse lapso de dor que lhe levara do céu ao inferno, ele precisou ser incisivo:
- Cuidado comigo, garota - O tom foi de bastante intimidade. Apesar de tentar, aquela cara de dor e aquele tom choroso não passava seriedade no pedido - Ta, ta. Se continuar assim, eu vou morrer antes de ver meus pokémons - Dramático. Você pode não estar acostumado com Kyle dramático, mas há algum homem com dor que não é assim? Acho que não.

Mas logo ele conseguiu retornar a compostura e ir. Nesse exato momento achou que talvez estivesse em mais segurança se tivesse ido sozinho, já que ser atingido por um tiro na cabeça não deve doer tanto quanto o que sentiu a pouco, mas esse sentimento logo foi deixado de lado. Em instantes, estava Karinna, Kyle, Ivy e uma Lasanha entrando pela porta da frente. Uma porta de madeira grande, com uma maçaneta em formato de barra vertical. Ivy era quem estava mais para frente, então Ivy foi quem tocou no objeto e, a priori, puxou.

Não deu muito certo, mesmo aplicando um pouco de força. Aplicando lógica básica, empurrou com a mesma força que usara para puxar, se tornando uma onomatopeia. VUPT! Fora o que Ivy se tornou: um enorme vupt entrando de vez na casa. Se equilibrou apenas depois de dar várias passadas tortas, se esforçando para não cair, e assim encontrou o sofá. Apoiou com as duas mãos e, de imediato, derrubou o móvel, arrumando mais barulho.

Em resposta, um ronco parecido com o de um motor fora ouvido em cima de suas cabeças.

Agora, deixe-me narrar um pouco esta sala de entrada.

Era um quadrado perfeito. No fundo, uma lareira, ao redor, várias estantes de livros. No meio, sofás cor cinza-grafite, num tecido cafona-felpudo. O chão era de madeira e o tapete imitava um bicho-morto. Certamente eram móveis caros, mas a sensação que passava era que ninguém parou para decorar o local devidamente. Eram "restos" de decorações de casas maiores, que acabavam encontrando nessa sala um depósito-de-relíquias.

Por isso, nada fazia muito sentido.

O tapete meio "taxiodérmico" contrastava com um vitral gótico acima da lareira, tal qual o vitral não combinava nem um pouco com o busto barroco sob uma das estantes de livros. Não havia um enquadramento muito bom entre as estantes e os quadros na parede, deixando-os meio avulsos e sem uma sintonia entre si. O papel de parede era num tom amarelo-creme, tom clássico de quem está com preguiça de fazer reformas constantemente.

No fundo do salão, um corredor com diversas portas. Além das diversas portas, uma escada de madeira que levava ao andar superior. Bem ao fundo desse corredor havia uma entrada para a verdadeira sala de estar, mas de lá não vinha barulho algum. Kyle, ainda meio desengonçado, dava passos menores, deixando que Ivy continuasse na frente fazendo bagunça.

Ele já havia desistido de qualquer estratégia silenciosa que outrora cogitou.

PROGRESSO:

Uma coisa que esqueci de escrever no último post, mas que ficou bem claro na minha cabeça: Kyle respondeu Karinna quanto ao fato d'ela pegar os objetos de valores do ladrão. Ele disse com todas as letras "não sendo o cordão do meu chefe... tanto faz", e deu de ombros sem nenhum pudor. Depois disso, seguiram explorando o lugar, se separando um pouco e andando pelo saguão inicial.

Ao primeiro som de estilhaço no chão, os olhos de Kyle se arregalam. Ele olha para Karinna boquiaberto, vendo-a derrubar livro por livro, deslocar quadro por quadro e bagunçar lenha por lenha. Por um instante, ele tentou raciocinar o que a garota estava fazendo antes de perguntar, mas simplesmente não entendeu:
- ... Karinna? - Perguntou, num tom claramente confuso - ISSO É UM FLY BNB, NADA DAQUI É DELE, É ALUGADO!!!!! - Foi um pouco estranho como o tom calmo passou para um grito desesperado - SE A GENTE DEIXAR PARECENDO QUE ROLOU UM CRIME, VAI TER MAIS POLÍCIA ATRÁS DA GENTE!

As duas mãos foram na cabeça e mais uma vez ele sentiu uma pontada de dor arrasadora. Foi obrigado a se apoiar num dos sofás que Ivy não derrubou, sentar um pouco e tomar um ar. Quando sentou, se perguntou se teria fôlego para se levantar, mas o fato do tapete sob seus pés começar a feder a cinzas de forma extremamente forte, ele acabou concluindo que ali não era um bom lugar para passar mal.

Ao menos a dor lhe servia para frear. Não era uma pessoa que podia ficar estressada. Veja bem, eu digo que ele não "pode" ficar estressado; não que ele não queira. A impossibilidade de se expressar de forma irritadiça lhe fez fechar os olhos, massagear apenas uma das têmporas e começar a andar em direção ao corredor.

Ali, junto de Karinna, viu algo muitíssimo estranho: um rastro de sangue. Em primeira vista, era possível que o caminho ligava a sala de estar do fundo do primeiro andar até a escada. O sangue prosseguia por todos os degraus e sumia da visão de Karinna e Kyle não porque acabava, mas por continuar no andar de cima, fora do seu campo de visão.

Era um pouco difícil dizer se o rastro foi "pintado" ao arrastar algo da sala ao segundo andar ou vice versa, além de ser um pouco impossível determinar sua origem vendo apenas rastros. Ou descobririam entrando na sala, ou subindo as escadas.

As portas, agora escancaradas por Karinna, revelavam exatamente o que uma casa tem de comum: Cozinha, copa, quartos de solteiro (dois) e um banheiro grande. Nada muito peculiar, mas fora o suficiente para que Kyle se metesse dentro do banheiro, parasse um pouco e se olhasse no espelho. Depois de molhar um pouco o rosto e reparar que estava tão acabado e branco quanto poderia estar, começou a cutucar as gavetas atrás de algum medicamento útil, seja para dor, seja para infecção, seja para inflamação. Nem sequer sabia se poderia misturar tantos remédios, mas esperava que sim.

Cavucando ali ou aqui, achou três potes - bem estadunidenses - de comprimidos coloridos. Leu o nome inicial, não entendeu nada e decidiu botar pra dentro:
- Se eu cair você cuida de mim - Deu um sorriso amarelo, esperando não precisar dessa ajuda.

PROGRESSO:

Acho que se Karinna e Kyle morassem juntos, certamente eles iam se matar mais cedo ou mais tarde. Ele pela falta de delicadeza da moça, ela pela falta de amor próprio do moço. Seguiriam assim, numa eterna gangorra de emoções. Fora assim o dia todo! Será que eles suportariam isso por mais um dia?

Foi estranho quando Kyle se pegou tendo esse exato pensamento, enquanto olhava as madeixas loiras de Karinna se soltarem do coque improvisado e deslizarem até sua cintura, balançando para um lado e para o outro até ela prendê-los e virar para ele. Foi tão estranho quanto quando ela, possessa, começou a brigar com ele por conta de um remedinho. Perdido no deslumbre à elegância de Karinna, Kyle só pode rir de seu sermão. Não porque achara engraçado, mas por ter certeza de que aguentaria aquilo pelo resto da sua vida, todos os dias da semana, todos os horários do dia. Acordaria com aquilo no seu ouvido e pensaria o que nenhum homem nunca pensou que iria pensar: "como é agradável ter ela cuidando de mim".

Por isso, quando ela deu as costas, ele só soube ir para trás dela e abraçá-la, como se não houvesse poça de sangue alguma no chão. Na verdade, ele nem dera muita bola para essa decoração macabra e, como Karinna deu tanto foda-se quanto ele, esqueceu-se por um momento que aquilo era a cena de um crime.

Ela, de braços cruzados, o lembrou. No instante seguinte ao momento em que ele passou os braços por cima de seu ombro e a abraçou pelo pescoço, dando-lhe um beijinho no topo de cabeça, ela começou a matutar sobre a trilha. Kyle poderia parar aqui a admirá-la mais um pouco, mas ao invés disso, simplesmente a parou um pouco e disse:
- Obrigado por se preocupar - Deu um suspiro e a soltou por completo - ... pode continuar.

E Karinna continuou. Ela decidira que precisavam desvendar esse mistério e só fariam isso encarando. Ao explorar o local do primeiro andar, deixando a sala-de-estar no fundo, ela encontrara o item mais maravilhoso da face da terra: um pote de nutella fechado, em cima da geladeira. Salvo isso, apenas itens de FlyBNB, como cobertores, colchões, roupas de cama, cabides, toalhas e tudo mais. Nesse momento Kyle lembrou do quanto queria um banho, mas não achava uma boa ideia fazer agora, apenas balançou a cabeça, deixou essa ideia para lá e indicou que estava subindo as escadas.

Na sala de estar, pouco antes de optar por subir as escadas, nossa investigadora Rocket "descobriu" a origem do sangue. Digo entre aspas pois não havia nada de muito claro na cena, mas a quantidade PAVOROSA de sangue no chão deixava a entender que tudo começou ali, sendo arrastada aos poucos para o topo.

O que fazia aquele ponto ser identificado como o início? A falta de corpo-ensanguentado. Se o corpo não está ali, certamente fora arrastado dali, e não ao contrário... né?! Sendo assim, este é muito possivelmente o ponto de origem.

O que Karinna podia entender com esse cenário é que o sangue era tão viscoso e quentinho quanto podia ser. Não tinha muito mais que alguns minutos que ele foi esparramado naquele chão, assim como não havia muito mais que alguns minutos que o papel de parede creme se tornou a tela de uma carnificina pintada em sangue.

Era tanto sangue que ela podia ter total certeza: seja lá de quem for, está morto.

Já tendo tempo suficiente para analisar a cena superficialmente, Karinna pôde ouvir Kyle a chamando pelo nome. Sem euforia, sem tristeza, sem pressa, era apenas um nome que saíra da sua boca em um tom mais alto, ecoando por todo o edifício até chegar em seu ouvido. Como já esperado, o som vinha do segundo andar, pois foi para lá que Kyle se antecipou a ir.

PROGRESSO:

Ao subir o primeiro degrau da escada, Karinna pôde ver melhor as marcas em cada um daqueles lances de escada. Era uma marca de passos, mas definitivamente não era humano. Era uma pata relativamente maior que a de um mamífero comum, sem dedo opositor e com garras que encostavam apenas as pontas no chão.

Essa mancha causava um efeito um bocado engraçado, que pudesse confundir Karinna. Era como se houvesse uma "palma da mão" ensanguentada e, na frente dela, cinco pontinhos de sangue, respingados pelas pontas das garras. O formato parecia até desenhado, se você analisasse com um pouco mais de ilusão. Era como se alguém tivesse marcado sua patinha ali e depois feito cinco pontinhos em gotas grossas se sangue.

Ah é, detalhe importante, toda essa obra de arte era ensanguentada. As vezes até mais que o próprio rastro.

Já no topo da escada, antes mesmo de ver Kyle, Karinna sentiu um cheiro quente e doce...

... você já viu alguém que acabou de morrer? Digo, acabou MESMO. Não é aquela coisa de algumas horas, onde já houve IML, resgate e um cuidado com o corpo. Digo de alguém que acabou de sofrer um acidente, caiu no chão, bateu a cabeça, abriu a perna e morreu. Sabe? Sei que Karinna conhece esse cheiro, mas tu que lê, sabe? Sabe qual é o cheiro do sangue começando a coagular, do corpo deixando escapar resquícios que não deixaria, o cheiro da... falta de vida? Da alma que vai embora? O cheiro da... ausência?

Ele é um pouco doce e azedo ao mesmo tempo. É como uma bala fini, só que muito mais suavizado, como se estivesse diluído nos tantos outros problemas que estão mal cheirando o redor.

O cheiro veio antes da imagem: um braço desmembrado estava no chão. Nele, marcas de mordidas grandes ajudavam a compor um pouco mais perfil do assassino: bocudo, pezudo e com garras.

O engraçado é que, apesar de mastigado, aquele braço não fora nem engolido nem retirado na base da mordida. O bicho mordeu e puxou. Puxou tanto que soltou. Se fossem imaginar a cena, certamente imaginariam um grito de dor junto do crime. A outra coisa engraçada? Não foi isso que fez Kyle chamar por Karinna. Na verdade, ele estava parado em frente a porta, um pouco atônito mas com os ombros caídos, não demonstrando medo ou perigo iminente. Ali, de costas para Karinna, ele disse:
- ... achei - Apontou para dentro do cômodo, ainda sem virar-se para olhar a menina nos olhos.

O ronco de motor foi ouvido mais uma vez, daquela mesma direção.

PROGRESSO:

O garoto, ainda um pouco desnorteado, abriu um sorriso curto que foi se alargando, virando uma imensa gargalhada. Isso viera logo depois da pergunta de Karinna, fazendo com que ele não conseguisse lhe responder. Ele simplesmente não conseguiu se segurar. Num momento até perdeu o fôlego de tanto rir, tendo que se abaixar um pouco e apoiar os braços no joelho, sentindo uma pontada enorme na costela, tombando um pouco para trás em resposta.

Quando doia, ele parava um pouco, mas logo voltava a rir, repetindo o ciclo. Demorou para que ele conseguisse sair desse estado hipnótico, mas antes que saísse, entrou de vez no cômodo e deixou espaço para Karinna entrar pela porta e enxergasse a cena que lhe causara uma enorme descarga de riso.

Era risível? Não muito.

Era cavalheiro da parte de Kyle deixar uma moçinha ver aquilo ali? Certamente não.

Ele imaginava que Karinna ia achar tanta graça quanto ele? Provavelmente não, mas ele apostava que ela, ao menos, não ficaria com dó. Não era do perfil da garota - ao menos não mais - ser falsa-moralista; não iria chorar por quem não merece choro.

Então, Karinna pôde ver com seus próprios olhos: um enorme jacaré vermelho-vivo pintado de tinto-de-sangue. Suas costas tinha um mísero fragmento de escamas limpas; nada mais. Estava deitada sobre metade de um corpo-humano morto, com a cabeça jogada num canto da sala e o braço direito dentro da boca da pokémon, que mastigava ENQUANTO DORMIA.

Toda a vez que engolia, fazia um barulho semelhante a ronco. Era estúpido de ridículo; ela simplesmente comia dormindo. O pior é que nada parecia acordá-la muito fácil; nem a risada de Kyle, nem mesmo seu próprio ronco, muito menos a presença de Karinna. Ela estava no mais precioso sono...

E Kyle, vendo a situação, tirou da bolsa um Full Heal. Ele iria aplicá-lo, mas não sem antes ouvir e entender o que Ká tinha para falar sobre isso. Ouví-la e acolhê-la era sua prioridade, afinal de contas, ele não fazia a mínima ideia de como ela iria reagir a isso.

PROGRESSO: