IV - Treinamento noturno

Já eram margens do alvorecer quando o inquieto rapaz apressou-se em se lançar no abraço noturno das estradas de infindáveis perigos. Temeroso por ser indevidamente descoberto por alguma trabalhadora do Centro, o adolescente retraiu-se até a fuga de Viridian, onde ocasionou uma explosão de feixes de luz que se expandiu como um micro-festival dando as caras repentinamente, gritando seus habitantes na direção da terra batida e alvejando as mais diversificadas espécimes sobre o solo. Não obstante, as mais curiosas reações obtidas de cada um: Pareciam trocadas entre os pequenos espécimes que ali jaziam, variando entre a meiguice e a arrogância furiosa - fato ainda mais provado ao que o rapaz teve a infelicidade de ousar uma ameaça, o que mais tarde certamente lhe renderia uma bela dor de cabeça.

De humor inabalável, sugeriu prosseguir o caminho e ignorar aquele pequeno atentado - sem esperar resposta, virou os tornozelos e marchou para o horizonte, ouvidos e olhos atentos a quaisquer infelicidades que poderiam ocorrer. Infeliz ou felizmente, não o suficiente para opositores à tal momento de concentração e o abalo ocorreu na profundidade de seu peito quando as patinhas da frustrada felina lhe bateram nos joelhos, as garras curtas roçando no tecido do rapaz e o olhar pidão a observar a face de seu protetor, em sua busca imensurável por afeto e descanso.

Uma distração suficiente para lhe abater os instintos por meio segundo, a expressão manhosa fora o bastante para que seu corpo se precipitasse calmamente ao chão, os joelhos apoiados na terra e uma das mãos afagando a cabeça da pequenina - que cerrou as pálpebras e ronronou em satisfação, emitindo até mesmo um bater aéreo da garganta.

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Oh. Talvez não exatamente ela fosse a culpada por esse último som - coisa que ficou provada quando a sombra imponente de Honchkrow disparou por cima de Ayusa, com o destino à escuridão das árvores e a pretensão de finalmente livrar-se de seu maldito captor, por quem fora forçada a abandonar sua liberdade em prol de uma vida estúpida de batalhas ordenadas roboticamente. Um vislumbre de dar um adeus definitivo se prostou perante as poderosas garras e ela assim o fez - mas não sem antes buscar uma vingança, coisa talvez percebida pelo jovem quando uma dor suave tombou sob sua cabeça, quando a ave tomou posse do óculos que o treinador insistentemente carregava acima do gorro enegrecido.

Furtado e com um integrante em fuga.
Belo começo.

Insultada pela fuga da ave de plumagens bufantes e escuras ao que toda a atenção que antes recebia fora instantaneamente desviada à ela, a pequena Argent miou em descontentamento - seus pelos se eriçaram e as garras saltaram para fora com a velocidade de um raio. Um balanço singelo fez-lhe tremular a extensão da cauda e seu olhar se estreitou antes que o corpo se esticasse na quase formação de um passo...

Foi o momento em que o feixe escarlate tombou sob o corpo da menor e o envolveu como vinha, retorcendo-o em pura luminescência e desaparecendo com a pequenina em sua usual esfera bicolor, que bambeou por segundos junto às outras antes de ser domada pela calmaria, onde a quase doméstica fora impossibilitada de agir.

Talvez movido pelo instinto ou meramente adrenalina, o rapaz largou mão de todos os seus companheiros para dar início à perseguição da estressada Honchkrow, cujo voo estancou no centro de um lago - as asas batendo apenas para que seu peso se sustentasse acima das águas e a altura não fosse o suficiente para qualquer assalto surpresa. Suas garras abriram-se em milímetros e os óculos balançaram no ar, quase demonstrando um desejo silencioso de tombar na calmaria escura ali embaixo.

Com desdém, o glorioso pássaro encarou as orbes frustrados de Chris, um canto gutural deslizando de seu bico quase sempre cerrado, mergulhando novamente no silêncio de túmulo coberto. Afinal, sua imponência fora bem provada ao abater com facilidade todas as posses do pequeno rapaz, não?

Nada impediria que isso ocorresse novamente.

Apesar do humor bem contrastante em relação ao início da jornada e o pensamento voltado para a possibilidade de treinos, a compreensão reinava sob os impulsos do rapaz. Era fato que a captura da ave fora injustiçada e apenas com base na ânsia pelo poder, além de que não poderia acabar com toda a sua equipe apenas para tentar abater um pokémon teimoso e frustrado. Talvez parte de sua decisão residisse no objetos que se exibia entre as poderosas garras da alada, preciosidade herdada do pai e uma de suas únicas lembranças concretas dele.

Preso sem realmente estar, uma bandeira branca foi sacudida em forma de palavras. Tentou negociar com a espécime e até mesmo entregou em suas asas a decisão de ir embora ou realmente permanecer com o grupo. A emplumada amenizou o movimento das asas e titubeou sobre o assunto, perdendo alguns centímetros de altura ao passo que sua mente era ocupada por reflexões em relação à oferta. Bastaram segundos para que seu peito se estufasse como em uma respiração profunda e iniciou um trajeto em direção à margem.

Nunca o concluiu.

Aconteceu de repente, como se a bomba-relógio estivesse apenas esperando o momento certo para mandar tudo aos ares - e explodiu em forma de um jato firme e denso de água que eclodiu da escuridão abaixo, bem em frente ao bico do pokémon alado. Como se não bastasse, um presente entrou no caminho e se ergueu com potência perante a espécie fujona, cravando uma gigantesca garra ao redor de seu corpo e caindo novamente para as águas antes serenas, elevando pequenas ondinhas que se espalharam cinco vezes a partir do epicentro.

Sem pokémon e sem óculos.
Um lago novamente tranquilo e silencioso.
Não se deve julgar um livro pela capa.

Quase sofrendo de arritmia e com as veias pulsando pela adrenalina, um berro eclodiu da garganta do rapaz, sacolejando suas cordas vocais - em vão, visto que quaisquer resquícios de que um dia uma ave fora arrastada para as águas desaparecera por completo. Sem opções extras, todos os espécimes que há pouco foram resguardados outra vez, agora eram expulsos de sua tranquilidade para a ação completa. Com exceção de Argent, cuja aparição se deu com os braços cruzados e uma expressão raivosa, os animais fitavam o treinador sem entender absolutamente nada do sumiço abrupto de sua euforia - até que o problema foi posto na mesa e as posições definidas.

A jovem borboleta balançou os pés por uns dois segundos e deu um rasante, sobrevoando o lago e afastando-se a cada vez que pensava ver algum movimento em sua superfície, acompanhada com o olhar pela felina que sentou-se perto da margem e se espreguiçou lentamente, afugentando o roedor arroxeado e o levando a sentar próximo de uma árvore, onde Volcano escondia parte do corpo, receoso. Kraken bateu continência e pulou para as águas: As partes avermelhadas sob sua cabeça emitiram um brilho suave e iluminaram parcamente a escuridão submersa enquanto o rapaz se despia na margem e mergulhava logo a seguir, usando a luz expulsa do corpo do aquático para se guiar. Alguns peixes se afastavam com tal interrupção e outros se mantinham dormindo tranquilamente no fundo do lago, alheios à "visita" causada pelo rapto de uma aérea.

Sua luz passou pelas paredes, por rochas, por um buraco que ali jazia, pelas algas...

...

Então, o brilho avermelhado regrediu até a passagem sombria encrustada na parede daquele meio aquático. Parecia estreita para alguém ou algo enorme, mas grande o suficiente para se espremer lá dentro ou abrir passagem de alguma maneira. O polvo aproximou-se da abertura e a encarou de dois metros de distância.

Seria por ali a rota de fuga do misterioso sequestrador?

Embora talvez pudesse ser uma atitude não muito inteligente devido às circunstâncias, o rapaz ordenou para que o jovem polvo se adiantasse na caverna e seguiu-o assim que o brilho avermelhado passou a iluminar as paredes mescladas de terra e rochas. Abandonando quaisquer auxilios que poderiam ocorrer, espremeu-se na esguia passagem e prosseguiu penetrando-a, o ar diminuindo a cada movimento e seu pulmão se comprimindo aos poucos, a sensação claustrofóbica permeando sua mente...

Até o oxigênio desaparecer.

O pânico veio junto com a água, que deslizou por sua glote em aterradora velocidade. Afinal, qualquer ser humano não é capaz de viver sem respirar por tanto tempo - quem sabe teria sido uma boa ideia ter emergido uma última vez para tomar fôlego antes de se aventurar nas profundezas obscuras de um túnel qualquer? - e não era de se esperar que com Ayusa pudesse ser diferente. Seus membros lentamente pararam de obedecer, embora houvessem se debatido anteriormente em busca da liberdade dos braços aquáticos que insistiam em manter-lhe ali. A mente ignorou tudo o que mais poderia ter acontecido e passou a se nublar; Foi onde o rapaz quase desistiu.

Porém, a sensação dos tentáculos suavemente lhe envolvendo o pescoço ordenou o contrário. A ideia de prosseguir foi instantânea e seu corpo terminou o deslize - uma parca claridade apareceu a centímetros... E então, a ordem da fuga apareceu; as partes pegajosas deslizaram pelos ombros do corpo do adolescente ao que este se impulsionou de uma vez e encontrou o tão milagroso ar ao se apoiar numa margem rochosa. Tossia água, as mãos se firmando para que não afundasse e perdesse a capacidade dos resquícios de consciência que ainda possuía. Sua cabeça tombou nos braços fixos na superfície lisa e boca e nariz se uniram para uma única função: Encher seus pulmões com a gentileza do oxigênio ao expulsar o temido elemento marinho de seu interior. A seu lado, boiando e com os orbes escuros brilhando temerosamente em preocupação, um - quem sabe? - herói: Kraken.

Estava a salvo.
Por enquanto.