IV - Treinamento noturno

Ainda que houvesse demorado alguns minutos, Ayusa fez juz à sua personalidade ao retornar para sua normalidade com um berro em busca da ave raptada. Como se não bastasse o susto de quase perder o treinador, o pequenino Kraken teve de lidar com aquela outra sonoridade abrupta, que o fez recuar e lançar uma tinta escura nas águas. Um de seus tentáculos repousou sob os olhos e se encolheu, um brilho tímido escarlate sendo emitido das formas ovoides em sua cabeça. O adolescente suprimiu um riso e o metamorfoseou numa curvatura suave sob os lábios, iniciando uma carícia suave pela parte superior do corpo do molusco.

Após esta breve interação, novo questionamento lançado. Então, o animal se movimentou sob as águas e um de seus tentáculos se ergueram acima destas, apontando para um local ao longe na - agora visível - caverna subterrânea, inflada de bolsões de ar... Onde seus outros pokémons poderiam ter sido muito úteis. Lamentos à parte, havia outra passagem em uma paredinha próxima daquele local pequeno, porém, sem obstáculos e com um tamanho suficiente para que o rapaz passasse apenas um pouco inclinado. Além disso, algumas poças d'água recentes e outras meio ressecadas, que traziam a variação dos tons acinzentados sob o piso, indicavam a recente passagem de algum pokémon razoavelmente grande por ali. Provavelmente estariam na pista certa, mas...

Arriscaria ele se perder ou coisa pior no desconhecido apenas por um pássaro fujão? E os outros animais, abandonados à própria sorte e experiência do outro lado; O que impediria que algum selvagem os atacasse ou que alguém de má índole os roubasse - se  não coisa pior?
Realmente valia a pena?
Cabia a ele decidir.
E provavelmente esta decisão já estava tomada.

Em ingênua esperança, o rapaz carregava no peito a possibilidade de que, após toda aquela aventura submarina, aquela ave teimosa finalmente o reconhecesse como verdadeiro mestre - ou pelo menos alguém capacitado de guiá-la pela vida - e amenizasse todos os problemas que poderia encontrar pela frente. Barulhento e descuidado, sua voz ecoou baixinha pelas paredes cavernosas, fazendo com que o pequeno Kraken escondesse um dos olhos com o tentáculo que pendia na lateral do rosto de seu treinador.

Graças ao novo formato acima da cabeça, Ayusa acabou tendo que engatinhar através do túnel para que não acabasse batendo nem a cabeça e nem o molusco no teto rochoso. A entrada permaneceu seguindo por, quem sabe, infindáveis minutos (ou seriam segundos?) até que desembocasse em uma galeria maior. Não só uma passagem, mas dezenas se expandiam ao longo da gigantesca área.

Oras! Mas e agora, por qual diabos de caminho deveria ir? Talvez fosse só seguir as marcas meio sombreadas no chão e-!...

Foi quando os tentáculos do polvo prenderam a boca do agitado rapaz. Então, o fitou por alguns segundos... Antes que apontasse para um canto da caverna em específico. Lá, um pequeno trio que, devo dizer, se "divertia" mais do que poderia prever: Honchkrow, abatida pela inconsciência (talvez por um ataque, talvez por falta de ar... Impossível saber, uh?), um pequeno caranguejo acima de seu chapéu natural enquanto batia alegremente as pinças em um ritmo constante. E, sentado à frente do bico da ave, um formato ovóide azulado e com uma cauda a encontrar música com o chão, sincronizando-se com o crustáceo ali acima.

Ora, ora.
Aqueles eram os vilões?

...
...
...

Mas aquela pinça não era diminuta demais para ser comparada à que havia visto antes?

Ao dar-se conta dos dois guardiões da ave desmaiada, Ayusa temeu que o jovem Kraken, apesar de mostrar-se estritamente útil até aquele momento, não fosse capaz de segurar uma batalha contra ambos. Amaldiçoando-se novamente por não ter trazido consigo pelo menos um de seus outros companheiros, olhou ao redor e ocultou-se parcialmente atrás de uma pilastra rochosa, refletindo sobre suas opções para expulsar aqueles estranhos animais dali e, assim, fugir com a pobre aérea abatida.

Após breve resolução, buscou novamente o auxílio de seu molusco; O repousou no chão e recolheu algumas pedrinhas soltas das paredes. Como o polvo não poderia fazer o mesmo sem perder o equilíbrio, se manteve atento apenas aos pokémons que ali mantinham plantão, vez ou outra desviando o olhar para o trabalho de seu mestre. Este, por sua vez, aguardou. Assim que viu a oportunidade, lançou os pequenos objetos contra paredes opostas, fazendo o eco na caverna e estancando a "banda" improvisada dos dois espécimes.

As reações poderiam ter sido curiosas. O caranguejo recuou instantaneamente para trás do "chapéu" de Honchkrow, ocultando-se por ali. Já o azulado se jogou para frente, erguendo-se sob os pequenos pés e virando-se na direção do barulho - de relance, Ayusa reparou em seus óculos sendo utilizados por tal estranho espécime, cuja espiral nascia do centro da barriga e se prolongava por quase toda sua parte da frente. Aliás, ao contrário do que ele poderia esperar, nenhum dos dois se movimentou dali.

E agora? Poderia ele tentar enfrentar a dupla para fugir com Honchkrow, ou...?

Abandonando a razão quando os orbes detectaram o curioso espécime azulado fazendo uso de uma relíquia para si, o rapaz desistiu de tentar expulsá-los dali e lançou a ordem que colocaria o molusco em uma possível situação de risco extremo. Afinal, ali, estavam ambos perdidos: Ao contrário da dupla 'inimiga', que provavelmente teria grande conhecimento da área.

Kraken ergueu os orbes escuros para seu treinador, em claro gesto de descrença. Porém, ao se deparar com aquela expressão determinada, soube que não poderia fazê-lo mudar de ideia: Então, um suspiro borbulhado deslizou por baixo de seu corpo e seus tentáculos o guiaram para longe da pilastra em uma aproximação quase tímida - e duas batidas de pinça serviram para alertar o aparente girino, que virou de uma vez na direção de Tentacool e findou o movimento com uma careta, batendo a cauda por dois segundos contra o piso rochoso, porém, nada ofensivo até o momento.

E agora?

Então, o que se desenrolou ali à frente foi uma metamorfose suave, após gesticulações e expressões corporais. O girino parecia relaxar, ao contrário do pequeno molusco que, embora se mantivesse neutro, estava vagamente tenso. Não diferente era o caranguejo semi-oculto nas plumagens de Honchkrow, cujas garrinhas batiam suavemente de vez em quando.

Aparentemente, o polvo havia obtido êxito em se enturmar, mesmo que temporariamente. Mas e agora? O que o garoto poderia fazer para retirar a ave dali sem que fosse notado, ainda mais sem nenhum pokémon extra?