[Villain] – Lilycove City –

— Talvez eu esteja. Talvez eu esteja louca. Vai saber. — Retrucou, um riso abafado escapando da garganta enquanto balançava a cabeça, rápida, tentando espantar os pensamentos que a corroíam aos poucos. Ora, se não estava sonhando, seria aquela mais uma das tantas experiências amaldiçoadas de realidades paralelas que constantemente acabava em? — Era só o que faltava, justamente quando ia poder relaxar um pouco... — Murmurou, apertando as pálpebras por um instante e respirando profundamente, retirando outra de suas esferas: Não em busca de Lucario dessa vez, oh, não, mas sim de sua dócil Venusaur - afinal, se queria companhia, nada melhor que a espécime que trazia consigo desde o início de toda aquela jornada que, querendo ou não, testemunhara uma parte massiva de todas as situações malditas e sombrias nas quais acabava aprisionada.

— ...Que diabos de lugar é esse? — Perguntou, sem saber ao certo se esperava alguma resposta. Mesmo que sim, por algum acaso a teria de seus pokémons? Não acreditava nessa probabilidade, não tinha fé que em algum momento ela poderia se provar real. A cabeça virou um pouco de lado, em busca da presença da moça que havia sido salva por si há pouco tempo - ela ainda estaria ali, ou teria sido tragada sozinha para aquele projeto de buraco de minhoca? — ...Espero que não seja mais uma das patifarias de Arceus. — Sussurrou ao vento, um encolher discreto de ombros enquanto saltava da mobilete; Por algum motivo, não acreditava mais que precisaria dela, não naquele instante, não naquele lugar.

— ...Mas, por mais estranho que possa parecer, não me parece ser.

Assim que abandonou seu "porto-seguro" e os pés afundaram no macio projeto de lama movediça que agora aparentemente dominava todo o terreno, soube: De alguma maneira, mais uma vez havia atraído uma das tantas dimensões que costumavam cercar e sequestrar-lhe de seu universo comum, distante da teia de realidade que a assegurava estar tudo bem - quer dizer, pelo menos, tão bem quanto era possível no caótico domínio de Arceus. Temor era um sentimento amigo e de casa, que pulsava por seu peito e escorria pela coluna enquanto dedos invisíveis pareciam agarrar-se em cada centímetro de seus membros, aprisionando, puxando, tomando.

"For you, your families will grieve."

— ...Fique próximo, Navi. — Ordenou, ríspida, engolindo em seco ao dar-se conta de que sua única companhia naquele ambiente amaldiçoado seria o bendito sarcófago de sórdidas intenções. Era incapaz, pelo menos momentaneamente, de desvendar a chave que a arrastara até ali, que a forçava a ficar; Bem, sequer tinha como ter certeza de que algum dia a alcançaria, em realidade. — Você vai saber se precisar agir. — Impotência era o sentimento que mais forte se agarrava aos seus músculos, órgãos, veias - arrastada para baixo, centímetro pós centímetro, abandonada à um Limbo solitário, perdida em um matagal verdejante acometido pela névoa.

A respiração, quando o chão já engolia-lhe o maxilar, se prendeu; Os orbes acinzentados passearam pelo firmamento onde há pouco o céu repousava, as pálpebras resignando-se em cerrar antes que o sufocar do terreno a engolisse com violência passiva, os ombros relaxando ao se dar conta de que de nada adiantaria lutar para escapar dali, por algum motivo - ora, havia tentado, afinal. Não se afunda sem que se tente nadar e, principalmente, não se desiste sem que se perceba que é um esforço vão.

Então, entregou-se. Se deixou consumir pela lama, o ferro, o sangue - confiou que, de alguma maneira, aquela seria sua saída mais fácil e, caso não, talvez enfim poderia ter um pouco de tranquilidade para a alma há anos atormentada.

Ah, diga, celeste: Se partisse, teria consigo algum arrependimento? Além dos tantos fantasmas que se acorrentavam em seu corpo, às suas memórias, traria na bagagem de seus anos sórdidos o terror de uma pendência que não só lhe assombrava, mas que também sequer havia tido a oportunidade de enfrentar outra vez?

O ar escapou-lhe dos pulmões quando, em cheio, a consciência sussurrou-lhe um nome familiar, próximo, cuja resposta jamais havia tido a chance de conceder e cuja promessa de união talvez estivesse fadada à ser, mais uma vez, maculada; Questionou-se em silêncio se estaria aprisionada, se ainda seria capaz de escapar das garras férricas da terra amaldiçoada que a envolvia, do destino negro que pairava sobre seu ser e essência.

Se estivesse, restava-lhe...
...

Desculpe, Karinna.
Algumas promessas são, simplesmente, difíceis demais de se manter.

Poucas coisas são tão drásticas quanto a perda de si própria para um mar desconhecido de angústias e sangue.

Flutuando nas vísceras de um líquido viscoso cujas origens repousavam em sua íntima ignorância, a ruiva jamais sequer imaginaria que compreenderia tal sensação da maneira mais física possível. Descascada como uma cebola, a ânsia de berros sofridos era sufocada pela impossibilidade de que quaisquer palavras, mesmo sons, escapassem de uma garganta que em pouco tempo não mais existia.

Iam-se suas digitais, as unhas, as pontas dos dedos, os tendões e as articulações.
Partiam-se os ossos, a carne dos membros, os músculos e a pele que os recobria.
Rasgavam-se os órgãos, um a um; Estômago, fígado, rins, coração.
Esfacelavam-se, então, os segredos repugnantes: Gordura, sangue, bile, saliva - pensamentos sórdidos, e também su'alma.

Fragmentos, partículas, estilhaços.
Defasados, perdidos, destruídos.

Não lutou.
Se lutasse, não saberia para quê, como, por quê.
Ora, mas e não era patético que se perdesse de maneira tão simplória, rítmica como melodia, após tanto tempo batalhando (em vão, agora ponderava) por uma sobrevivência sem sentido e significado, simplesmente por um desejo selvagem, inconsequente e inconsciente de estar?

"Você pode vencer,", pulsaram-lhe no (des)íntimo as palavras.
"mas não assim."

Não assim.

Era como se houvesse sido transformada em uma estranha e simplória bolinha de pingue pongue. Puxada de um lado para o outro, outrora ao vazio e, então, repentinamente, à "liberdade" de um universo caótico. A pancada em seu estômago - ele existia? - era violenta, bruta, exigindo sua atenção e presença, titereando-a como uma marionete quebrada que há muito não se desprende dos próprios fios. Tanto que a respiração bagunçou-se por completo quando o corpo foi arrastado para fora da lama férrica que a fagocitava, os pulmões sufocando momentaneamente no ar puro, ou tão puro quanto o era,  os berros de Navi ricocheteando em sua cabeça e tomando as rédeas que, por um momento, ela havia abandonado.

Não assim.

Não assim.

Os pés afundaram quase que imediatamente na terra quando o corpo sentiu o repuxar teso ao redor do seu pescoço, arrastando-a como um animal enjaulado. Recusou-se em seguir; Ora, não teria motivo para se permitir fazê-lo com tanta facilidade - ao contrário da lama barrenta que a fazia afundar ainda mais a cada movimento que arriscava, ali poderia se dar ao luxo de lutar contra a correnteza, tal como jamais ousaria fazer em meio ao oceano, se parasse para pensar.

Entre os tantos momentos caóticos dos quais participava, arriscar comprar um "quem cala, consente" não estava entre os seus planos para uma dimensão mórbida e paralela. Apesar de precisar de alguns segundos para reestabelecer os próprios sentidos, bastou um balançar rápido de cabeça para que os orbes acinzentados focassem na entregadora puxada pouco a pouco pelo aparente responsável daquela dimensão - os ombros retesaram, o canto dos lábios se torcendo diante da ousadia da criatura; Entretanto, quando as pupilas finalmente pousaram na sombra amarelada que tentava fisgar a moça há pouco resgatada, um calafrio insone percorreu pela linha de sua coluna, ácido, nauseante. A garganta se apertou, os dentes pressionaram no interior das bochechas, o ar escapou dos próprios pulmões mais uma vez - oh, oh.

...Por que aquilo parecia tão familiar?

— ...Navi, eu- — A voz falhou ao se dar conta das garras que escapavam das outrora mãos do sarcófago; O cenho se franziu, os ombros encolhendo em resposta à aparência exótica do animal. A reação quase que imediata foi retirar a pokédex e apontar o visor para o espécime, certificando-se de que não estava completamente surtada e, hah, foi um incômodo inevitável aquele que pulsou em suas veias ao se dar conta das diferenciações nos movimentos do fantasma. — ...Ugh. Navi, que tal um Will-o-Wisp para esquentar as coisas? — Indicou, balançando a cabeça na direção do espécime amarelado oposto: Precisava que ele largasse as correntes se quisesse uma batalha mais despreocupada; Bendita a hora que trouxera aquela mulher consigo, huh. — Já que está preparado... Use também um Shadow Claw!

...Espero que compreenda, dócil raptor.

Gray.

Foi de maneira quase imediata que o cenho se franziu diante das palavras confusas do psíquico à sua frente. A dificuldade em encará-lo pulsava, vil, por todas as suas veias: E não só por suas afirmações e maneira com a qual a adversava, mas simplesmente por seu singelo ser. Então, influenciadas pelas rudes palavras do espécime oponente, as questões afloravam mais e mais em sua cabeça, especificamente pela menção do especialista que há pouco havia encontrado - ora, por qual diabos de motivos ele era mencionado de maneira tão aleatória, em uma dimensão tão divergente à qual vivia e sobrevivia?

— ...Ugh. — Murmurou diante do erro do fogo fátuo arremessado pelo sarcófago, os ombros encolhendo enquanto a cabeça balançava e tentava espantar os pensamentos que, naquele momento, eram inúteis; Quer dizer, independente da resposta na qual podia chegar ao pensar sobre tudo aquilo, não seria muito útil se acabasse simplesmente destruída sob as mãos amareladas do narigudo hipnotizador? — ...Insista. Duplo Shadow Claw. — Instruiu, simples, só.

Não podia ser tão difícil assim...
Né?