Como imaginei, meu olfato não era nada comparado ao dos meus rastreadores, no entanto aquele fedor era familiar… macabramente familiar. Bem, quanto a Valentain… ele me pareceu se esforçar para parecer casual ou pelo menos simpático, mas talvez seja só meu instinto de autopreservação na defensiva. É aquela história: “Treinadores vemos, costumes não sabemos”... ou algo do tipo.
O comentário sobre o pokémon psíquico, sempre presente no imaginário popular dentro das cantigas e histórias pra botar medo em crianças, não me gerou reação alguma. Não era de se espantar que ele não estivesse familiarizado com o caso, ou que se importasse com aquilo. Se fosse o caso, ele teria ouvido algo na cidade de Azalea, mas é mais provável que tenho vindo direto para a região da floresta. Notei o parceiro aquático ao lado dele, uma ótima escolha dada a situação geral. Tenho Kinney e Mirana com seus golpes gélidos, mas ainda me falta um poderio aquático. “Coloque na lista, recruta.”, até consigo ouvir a voz do meu velho ressoando em minha cabeça sobre esse “detalhe” importante.
Constatando que não obteríamos respostas ficando parados, mas sim adentrando na mata, começamos a dar nossos primeiros passos. Literalmente falando, já que em breve nosso caminho seria interrompido novamente. Não sei como Valentain se comporta em ambiente selvagem e denso, mas eu agia como o padrão de qualquer “mateiro”: passos cautelosos, observando onde pisava. Kinney era naturalmente silenciosa e Leona seguia com sua graciosidade de bailarina, agora ainda mais apurada após a evolução. Nesse contexto, o som de algo se quebrando se fez ecoar pelas árvores. Se fosse distante de nós, possivelmente era algo à nossa espreita, mas o som veio logo de baixo. Pelo som, julguei ser apenas um galho ressecado pela falta de umidade e pelo fogo, mas logo a Starmie de Valentain revelaria uma das cenas mais medonhas e horríveis que testemunhei.
- Meu Arceus… - virei meu rosto, enojado, quando o odor forte subiu até minhas narinas e a visão conciliou o fato ao caso. Um corpo humano, enterrado em uma cova rasa muito mal feita. O som de “crack” se deu pelo fato de Valentain ter atolado o pé naquele misto de lama, sangue e vísceras, e quebrado a articulação do joelho daquela pobre alma. Um misto de sentimentos correu pela minha cabeça, juntamente das lembranças do pós-ataque de Wrong Turn meses atrás. Que ironia, sair de casa para resgatar pessoas e, de repente, ter a morte como companhia.
- Eu cuido disso… - não que esperasse que o rapaz fosse tomar alguma atitude diante daquele cenário, no entanto acabei por falar já que era ossos do ofício - Kinney, vigie o perímetro. Leona, fique atenta, mas não se “aproxime” muito… - o comando para minha Weavile era o padrão, mas para Gardevoir era mais implícito. Leona sempre teve uma sensitividade aflorada, uma percepção extra-sensorial, e aquele ambiente nitidamente era pesado demais. Não sabia ao certo até onde ela sofreria com a possível carga emocional residual ali presente.
Retirei um par de luvas de dentro da mochila, enquanto tentava manter a respiração controlada. Não sei como, mas conseguia manter o estômago controlado… ou, no caso, o que havia dentro dele, visto o odor e visão. Vesti as luvas enquanto repassava os protocolos de identificação de corpos da academia. Como socorrista, tive aulas de primeiros socorros emergenciais e traumas, então sabia algo de anatomia humana. Pelo grau de decomposição apresentado, havia alguns dias que aquela cova foi feita, e pelas marcas de mastigação, ela fora revirada e exposta por animais e Pokémon atrás de comida. Para constatar gênero e idade teria que desenterrar a parte inferior para analisar o osso da bacia e a extensão do fêmur, mas esse era um detalhe técnico ao qual não tinha dominado, ainda mais se tratando de uma provável criança que mal entrou na puberdade. Por Arceus, eu não queria mesmo fazer aquilo. Para minha “sorte”, parte do crânio estava exposto. Se pudesse ver a região da mandíbula, poderia ter uma ideia do estágio de crescimento do cadáver, já que toda a região é preenchida pelos dentes definitivos antes destes tomarem lugar do dente de leite, trocados até a adolescência. A garota que estava procurando tinha por volta de dez anos de idade… não, não era hora pra pensar sobre isso.
- Não dá pra saber se é menino ou menina… mas tá aqui há um bom tempo… - comentei em voz alta depois de ficar um bom tempo calado enquanto investigava o corpo. Balancei a cabeça rapidamente e respirei fundo, retirei as luvas com certa violência e atirei pra dentro da mochila, num espaço reservado para lixo. Saquei o RangerPad. - Central, na escuta? Recruta Vitale na Floresta Ilex reportando. Localizei um corpo humano enterrado em cova rasa revirada nas imediações. - esperei o retorno do contato para repassar quaisquer informações adicionais que encontrei. Seja lá que estivesse acontecendo, não era nada bom… a alguém iria pagar caro por aquilo.