Por Arceus. Naquele ínfimo instante em que calcorreavam do píer até o casebre, o louro constatou o que — ao menos para ele — era o óbvio: a especialista era, de fato, maluca. Comparava-a em seu consciente para uma Ferrari cor-de-rosa: ia de zero a cem no primeiro evento intempestivo. E não matutou acerca disso depois do peteleco, fê-lo no momento em que a loura começou a bramir a real figura por trás da transformação de algum humano em zumbi — nem ao menos sentira o empurrão dado por Karinna.
Respirou fundo.
A dupla calcorreou até o singelo casebre que fora oferecido pelo velho pescador próximo às águas. O odor viajava pelo ar e invadia as narinas tanto do kantoniano quanto de seu inicial; o ígneo pensou em avançar junto com o monstrinho dracônico da especialista psíquica. Por educação — ou mesmo desconfiança por um homem estranho subitamente oferecer algum abrigo —, Nico pigarreou, e nesse pequeno sinal, Charmeleon interpretava muito bem as entrelinhas, recusando educadamente. Acariciou a sua barriga depois de alguns sanduíches que Karinna oferecera outrora.
Nicholas se dirigiu até o banheiro, tomando a toalha que lhe fora oferecida e alguma roupa reserva que levou consigo: uma camisa preta sem estampa, uma calça de sarja de coloração verde-escuro e um tênis casual de mesma cor da peça que cobria o seu dorso. Passou a mão sobre as douradas madeixas que escorriam por sua testa, desgrenhando seu cabelo como sempre usa usualmente. Devidamente trocado, abriu uma pequena fresta na porta, chamando seu inicial com o intuito de entrar no cômodo — e Charmeleon o fez. Agachou-se, murmurando audível apenas ao pequeno lagarto:
— Olha aqui, antes de chegar pra falar com qualquer pessoa, você só vai se eu deixar, entendeu? Agora por culpa sua, eu vou ter que aguentar essa perturbada o caminho inteiro, porque se eu sair do lado dela, essa doente vai acabar se matando por causa de algum surto — o ígneo grunhia baixo tentando justificar a aproximação, ensaiando um sussurro em que cantava, simulando a melodia sem-par que Karinna entoou habilmente; Nicholas balançou a cabeça negativamente. — Sem desculpa, e da próxima, eu saco você do time e você volta lá pro Birch. Considere isso um aviso.
O lagarto saía do cômodo, engolindo em seco com os olhos, quiçá com pinceladas pávidas em seu semblante. Nico pigarreou, sentando-se em algum sofá com sua expressão um pouco mais aberta para que os residentes não levantassem más impressões acerca dele. Enquanto aguardava, seu pequeno parecia esquecer momentaneamente da bronca e passava a se divertir com Nuka e Cindy, uma aprazível garota que ostentava sedosos fios dourados com algumas bonecas; a cena era deveras agradável a todos os presentes — sejam os louros por ver suas inocentes criaturas perfilando toda sua cândida aura ou os responsáveis pela menina.
Tic-tac.
O soído onomatopaico que retumbava nos ouvidos do treinador já passava a incomodar. Nicholas até entendia o tempo necessário para que não houvesse nenhum fio embaraçado ou nó nas madeixas que outrora ostentavam um brilho ímpar. Contudo, o que realmente importunou o treinador foi quando, do outro banheiro, a especialista passa a bramir em alto e bom de que o kantoniano não deveria fitá-la com o canto dos olhos, volvendo a ressaltar a demora em cuidar de seu cabelo. Sem uma única e ínfima pausa, gritou de novo para que o senhor puxasse algum assunto — ora, será que ela estava realmente empenhada em tirar a pouca paciência que ousava em jazer no louro?
Nicholas respirou fundo, volvendo seus olhos para Charmeleon, fuzilando-o com o olhar. O ígneo coçou a sua nuca, mirando suas palmas para o teto — como se dissesse “me desculpa, eu não tenho culpa de nada”. O louro respirou fundo mais uma vez. Com discrição, apontou para o réptil e depois para o cômodo em que Karinna jazia, passando o indicador em seu pescoço; o pequeno, assim como dantes, engoliu em seco, volvendo a brincar com suas mais novas amigas.
E durante todo aquele tempo em que a loura aprontava-se para sair, teve de utilizar de seu pokénav para entreter-se dos mais variados tipos: ora algumas fases com o tradicional Tetris — rapidamente se cansou, e devido ao seu costume de jogos, conseguia chegar às fases mais avançadas com habilidade sem-par —, ora lendo algumas notícias do mundo ou sobre seu time do coração, o São Pawniard, comandado pelo treinador Fernão De Niz.
Foram longos e tortuosos quarenta minutos até que Karinna, agora trajando um alvo vestido de alças finas que realçava ainda mais sua angelical beleza — em contraste com o seu temperamento, como mostrado há pouco tempo — chamando Nuka para que fossem à caça das criaturinhas que lançaram seus ataques sobre a dupla de treinadores. Assim que esteve tudo pronto, colocou sua mochila sobre suas costas, sinalizando para que Charmeleon deixasse a boneca e o acompanhasse.
Do lado de fora, um buggy de cor amarela mostarda aguardava que os dois adentrassem para saírem na expedição. Os dois monstrinhos acomodavam-se na parte de trás, e pouco mais ao lado, o louro ficou na parte da janela, apoiando o seu cotovelo sobre a lataria do carro — em um lugar em que ele não fosse arremessado ou acometido pela inércia em momentos de freadas ou partida — com a mão esquerda repousando entre os lisos fios dourados. Os orbes cerúleos buscavam fitar o céu azul da noite branda de Lavender.
E quem disse que ele o faria? Afinal, o senhor lançava uma indagação que, assim que os tímpanos de Nicholas processaram, o mesmo ergueu suas sobrancelhas em completa discordância de qualquer um dos laços que foi citado por ele. Até ensaiou uma resposta, sendo interrompido de prontidão por não apenas um estímulo vindo da perna esquerda da especialista — que era devolvido na mesma medida —, como uma risada mais alta que um Boomburst evocado por um Exploud.
Torceu o cenho, levando os dedos aos ouvidos para amenizar todo aquele soído. E mais provocações eram disparadas por Karinna, que por algum tempo, apertou a bochecha do kantoniano. Com o dorso da mão livre, deu um leve toque no braço da especialista, rechaçando todo e qualquer contato físico provocativo que partisse da mesma.
O caminho estava livre para uma resposta à altura, e Nico sentiu essa brecha — não podia perdê-la, não é?
Sorriu, convencido, os orbes cerúleos dirigiam-se ao banco da frente, onde jazia o motorista — o treinador estava sentado justo atrás do banco do motorista.
— Quem gosta de gente louca é psiquiatra, senhor, eu não — respondeu, apenas olhando de relance para Karinna em tom provocativo. — E digo mais: pra aguentar essa transtornada aqui, tem que ser duas vezes pior, e se descobrirem alguém pior que essa louca, pode trazer o Prêmio Nobel.