#000 - THE FOOL

Não consegui dormir praticamente nada durante a noite. Sentia a palma das minhas mãos suadas mesmo depois do banho, me forçando a usar luvas de tecido fino. Pigarreei tentando me recompor ao sair do quarto caminhando pelo corredor que eu conhecia como a palma da mão, pela casa que eu conhecia tão bem e sabia onde ficava cada móvel, cada objeto que minha mãe e irmã tomavam todo o cuidado para manter sempre nos mesmos lugares e se havia alguma mudança sempre tratavam de me informar de forma que eu pudesse me adaptar facilmente. Não tinha necessidade da minha bengala retrátil mas a mantinha no bolso interno do meu sobretudo sabendo que logo ela seria parte essencial da minha jornada.

— Ora se não é nosso mais novo aventureiro... - o tom leve e alternado me fez perceber que Alessa estava sorrindo ao me dar um tapinha no ombro e me puxar para um abraço apertado.

— Argh... Me larga, você tá fedendo! - funguei e empurrei minha irmã que soltou uma risada estrondosa.

— Tente cuidar de um grupo de Muk selvagens e me diga que cheiro você vai ter depois, bonitão... - ela apertou minhas bochechas e eu prendi a respiração por um momento, dando um passo para trás tentando me desvencilhar.

Themis já parecia mais disposta visto que eu a senti passar perto das minhas pernas indo até minha irmã que continuou radiante ao cumprimentar minha companheira.

— E aí, garota! - eu sabia que minha houndour se sentia sempre à vontade perto de Alessa mas achava muito estranho ela não achar esse cheiro algo impossível de se respirar.

— A mamãe tá lá embaixo? - perguntei torcendo as mãos e engolindo seco.

— Você acha que ela perderia esse dia? - Alessa respondeu e notei que ela estava abaixada, provavelmente fazendo carinho em Themis.

— Vamos indo então. - respondi com o tom de voz mais neutro que podia reproduzir.

— Ahn... Tá bom, eu vim justamente pra pegar umas coisas no quarto mas desço daqui a pouco, pode ir na frente.

Sorri e acenei com a cabeça então chamei Themis e fui caminhando confiante até a escada que desci cuidadosamente quase sem pensar de tantas vezes que já tinha feito isso, percorrendo o corrimão com a ponta dos dedos no processo. Chegando até a sala de estar percebi o aroma de rosas e baunilha que era característico de minha mãe mas o silêncio permaneceu. Parei e fiquei confuso... Poderia apenas estar sentindo o cheiro do jaleco dela e ela não estar presente? Quando estava prestes a abrir a boca para chamar por ela senti o calor dos seus braços me envolvendo e meu rosto afundando em seu peito, podia ouvir seu coração levemente acelerado e suas mãos estavam frias. Não demorou para que eu sentisse algo úmido em minha nuca, suas lágrimas.

— Mãe... Você sabe que eu vou voltar aqui pra te visitar sempre que possível, não sabe?

— Sim, querido... É que... Tem certeza de que quer mesmo fazer isso? - sua voz soava trêmula e ela me apertava como se eu fosse sair correndo caso me soltasse.

— Eu quero e eu preciso. Não posso viver assim pelo resto da vida, por favor... - senti um nó na garganta e respirei fundo pensando nas minhas motivações que iam desde as razões mais conhecidas até objetivos tão secretos que eu nunca sequer disse em voz alta. — Por favor - continuei — Não me peça para ficar preso aqui por eu ser do jeito que sou. Não me trate como ele me tratou, mãe. Como se eu fosse fraco. Como se eu fosse um erro.

— Andrew, meu filho eu nunca faria isso, você sabe. Você sabe porque eu me preocupo, sabe que existem perigos lá fora. - Ela suspirou profundamente acariciando meus cabelos e enchendo sua voz de ternura. — Apenas me prometa que vai tomar cuidado, certo?

— Eu prometo, mãe.

— Bem, o professor Carvalho está viajando então entrei em contato com ele e conversamos um pouco sobre os itens necessário para seu início. Como membro do comitê de expedições da cidade e assistente do professor, eu mesma irei te passar seus itens, okay?

Ela se afastou lentamente e segurou minhas mãos.

— Sim, tudo bem. - não pude evitar de sorrir, sentia que ela estava finalmente transmitindo confiança na minha decisão.

— Certo, ouça bem... Evite ficar sozinho por muito tempo em sua jornada. Não estou dizendo isso por causa da sua condição mas porque uma das melhores partes da experiência é fazer amigos e conhecer pessoas diferentes. Sei que você é um garoto incrível e as pessoas vão adorar te conhecer se der a elas essa chance e não digo isso apenas como sua mãe e sim como profissional! - ela levantou um pouco a voz no final como que para assegurar para si mesma.

Eu ri levemente, cobrindo a boca com o dorso da mão esquerda. — Entendido, Dra. Evelyn Scott.

Ouvi passos pesados e acelerados que pela direção em que vinham apenas confirmavam minha certeza de que se tratava de Alessa. Isso e o cheiro forte também.

— Ei Andy! Tenho um presente pra você. - ela exclamou com um ar triunfante e sorridente e eu virei em sua direção, confuso.

— Espero que não seja um perfume já que seus gostos olfativos são meio duvidosos. - ri com a provocação e pude perceber que ela provavelmente estava fazendo biquinho pela forma que sua voz soou.

— Que maldoso...

— Vamos, mostre a ele! - minha mãe interviu e Alessa pareceu esquecer a zoação.

— Certo! Olha, sabemos que você gosta de vendar os olhos então é melhor usar sempre algo confortável, certo? Aqui, eu encomendei essa faixa super macia e resistente que você poderá usar à vontade!

— Wow... Sério?

— Sim, posso colocar em você?

— E-Eu... Pode. - senti meu rosto esquentar, minha irmã sempre foi superprotetora e atenciosa. Ela não estava demonstrando mas eu sabia que estava tão preocupada quanto minha mãe.

Senti suas mãos que estavam surpreendentemente bem mais limpas que antes, ela provavelmente lavou antes de manusear a faixa e então cobriu meus olhos com ela e eu pude sentir a maciez do tecido que era mais grosso e com um toque ligeiramente aveludado que não irritava minha pele. Cerrei os dentes sentindo a contração na mandíbula ao procurar segurar o choro pois não queria deixar elas ainda mais preocupadas e suspirei agradecendo por meus olhos já estarem vendados antes que elas pudessem vê-los marejados.

— Obrigado, Alessa.

— Sabe que sempre pode contar comigo, bobão.

Senti então os braços e o perfume de minha mãe se misturando ao odor de suor e Muk de Alessa que me abraçava em conjunto. Por quase um minuto não dissemos nada, apenas naquele abraço como se estivessem tentando congelar o tempo. Pigarreei e elas se afastaram.

— Bom, está na hora. - estendi a mão e recebi minha mochila que minha mãe disse ser preta como minhas roupas e já estar equipada com tudo que eu iria precisar.

— Ao iniciar uma jornada geralmente entregamos um pokémon inicial mas você já tem a Themis então boa sorte, querido. Espero que vocês se divirtam juntos e façam muitos amigos.

— E quem sabe algo mais... - insinuou minha irmã me cutucando.

— Que é isso, Alessa?

Tossi sentindo meu rosto ficar quente e passei a mão pelo rosto puxando o capuz do meu sobretudo como se quisesse me enfiar dentro dele.

— Ai mãe, ele já é um adulto... Só tô dizendo!

— Sabe que ele fica tímido com esses assuntos!

— Vocês duas querem que eu vá embora pra continuarem falando sobre mim? Porque eu ainda tô aqui.

Minha mãe riu sem jeito e Alessa soltou uma gargalhada me dando um tapa nas costas que me fez arfar. Decidi que era realmente hora de ir. Peguei um lanche para comer no caminho e me despedi de uma vez das duas com um beijo no rosto de cada. Themis, que apenas assistiu toda aquela cena em silêncio com sua seriedade costumeira mas que me parecia confiante como sempre e pronta para assumir o desafio e dar tudo de si. Saindo de casa tirei a bengala retrátil do bolso e estendi, respirei fundo sentindo a brisa e dei o primeiro passo.

Hora de sair do meu castelo de vidro.

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