(006) — Holy Ground

Talvez ele estivesse mesmo falando a verdade. Sushi não parecia desconfiar de alguma má intenção do rapaz, sem contar que seus olhos profundos pareciam passar uma certa... apreensão? Não sabia ao certo, ainda não era boa em ler expressões como Margo. Após dar o doce para o psíquico, observei a evolução fazer seu trabalho: meus olhos brilhavam diante daquela iluminação, até que cessou e eu abracei Alakazam com toda força do mundo.

— Parece que está falando a verdade. — dei um meio sorriso — Mas só por precaução... — peguei o punhal do rapaz, guardando nas minhas costas — Se é necromancer, acredito que conheça talvez a aura das pessoas... Se sim, sabe do que sou capaz. — pisquei — Por onde seguimos, então? — apontei em várias direções — Parece que você já está familiarizado com o local. Deixarei que nos guie.

Respirei fundo, pensando algumas vezes se deveria falar o que pensava. A nítida saudade do rapaz por sua avó me compadecia, mas ao mesmo tempo não podia abaixar a guarda... Já passei por maus bocados nessa rota, não poderia deixar se repetir. Mas, por fim e quem sabe para jogar conversa fora, resolvi contar:

— Sabe... perdi minha mãe e avó muito cedo em um assassinato. — fechei a expressão, como se lembrasse exatamente do dia que aconteceu — Não pude me despedir, então... — me proibi de compartilhar mais detalhes, engasgando com as próprias palavras — E-então, seria ótimo poder ao menos dizer adeus. — bufei — Desculpe por falar da sua avó daquela maneira. Não foi correto.

rota 121

Sei lá, minha mente funciona de maneira esquisita às vezes: apesar de sentir um certo alívio em ter compartilhado minha história, me culpei subitamente por ter abaixado a guarda. Agora Elfman sabe sobre minha vida e eu pareço uma pobre-garota-órfã-frágil e indefesa. Argh! Tento fugir desse esteriótipo sempre que posso mas é difícil. De qualquer maneira, era hora de confiar no julgamento de Sushi, que agora era um enorme Alakazam e com seus poderes psíquicos mais fortes do que nunca — se fosse para o rapaz me atacar, talvez já teria o feito.

— Sinto muito por isso. — dei um meio sorriso — Bom, ao menos você pode entrar para o meu clube de péssimos filhos que tiveram péssimos pais. — pisquei com o olho esquerdo para o jovem — Não tem nada melhor que poder culpá-los quando agimos mal em relação a alguma coisa.

Dei uma risada para descontrair e ver também se conseguia arrancar nem que fosse uma leve gargalhada do rapaz e aliviar o peso do tema em questão. Continuei andando ao lado do rapaz, agora com passos mais largos, já que o rapaz caminhando lentamente era quase equivalente à minha caminhada normal. Sushi seguia ao meu lado e vê-lo tão crescido era lindo demais! Toda vez que olhava de relance para o psíquico meu coração transbordava de amor.

— Sabe, podería-

Interrompi minha própria fala ao que Alakazam parou e olhou diretamente para um ponto específico da floresta; não demorou muito e um uivo bem sonoro ecoou por toda rota cento e vinte um.

— Hm. — minha expressão mudava, agora séria e preocupada — Talvez tenha sido um desses Pokémon novos que vieram com a tempestade. — cerrei os olhos e sinalizei para Elfman que continuássemos caminhando— Fique de olho, Sushi. Todo cuidado é pouco. — bufei — Você melhor que ninguém sabe o que já passamos nesse inferno de lugar.

rota 121

O uivo parecia ter cessado e, dando de ombros, sugeri que seguíssemos caminho. A chuva incessante começava a incomodar exponencialmente a cada segundo que passava, deixando-me mais e mais irritadiça: o único medo que passava pela minha cabeça era me descontrolar quando atingisse o ápice. A essa altura, minha bolsa e os itens dentro já estavam encharcados, mas se meu violino molhasse... Ah, aí sim o surto generalizado viria.

No final das contas, a pressa existia e ficar na rota cento e vinte um não fazia bem para minha cabeça. Em qualquer outro lugar, investigar aquela vocalização seria fundamental, mas não era o que precisava no momento. Uma pena:

Quando digo que são os problemas que me procuram e não eu que procuro os problemas, ninguém acredita.

A ação aconteceu tão rapidamente que somente senti Elfman me puxando para o lado e me desequilibrei. Alakazam já se colocava em posição de batalha e quando me recompus, percebi que havia quase perdido o braço para um Mightyena. Já circulando na minha cabeça que lobos andam em alcateia, me preocupei, mas aparentemente somente um Minccino muito do mal-encarado me observava.

Com isso, meu sangue ferveu.

Como se já não bastasse estar ensopada e cheia de gatilhos na cabeça, dois monstrinhos decidiam desafiar a mim e testar o que um por cento que sobrava da minha paciência. Meus braços e pernas começaram a tremer e minha expressão era unicamente de ódio: era tarde, a Karinna interna havia saído.

— SEUS ARROMBADOS! — cerrei o punho e pisei no chão com força — VAMOS DESTRUIR VOCÊS E PODE TER CERTEZA QUE SÓ VAMOS ACABAR QUANDO SENTIRMOS A VIDA ESVAINDO DOS SEUS PATÉTICOS CORPOS! — busquei na bolsa outra esfera bicolor e lancei-a no ar — MANJU, DUPLO HELPING HAND! SUSHI, DUPLO DAZZLING GLEAM! — cerrei os olhos e olhei para Elfman — Nos cubra caso algo tente nos interromper. — cocei a garganta — E obrigada por me salvar.

rota 121

Completamente tomada pela força do ódio, sequer percebi Elfman saindo para resolver sabe-se lá o quê: meu foco era derrubar aqueles monstros que entraram no meu caminho de qualquer maneira. Ergui a sobrancelha direita e abri um sorriso maléfico ao ver Sushi derrubar um deles, utilizando somente um golpe que tivera sua força aumentada graças a Manju. Busquei uma esfera metálica dentro da bolsa e foi o tempo de Alakazam derrubar o segundo.

— Muito bem, meus filhos. — caminhei em passos lentos enquanto fitava ambos os selvagens com desprezo — Sabe, pulguento. — agachei, olhando dentro dos olhos do canídeo, aproveitando para segurar seu pescoço e pressionando-o contra o chão — Dizem que a liberdade é superestimada. — lancei a Pokéball na direção de Minccino — E agora seu amiguinho vai pagar pra ver quando nunca mais sair daquele objeto.

Levantei aos poucos e suspirei, aproveitando para esticar ambos os braços para o alto e me espreguiçar. Apertei as pontas dos meus cabelos para retirar um pouco do excesso de água e caminhei lentamente até a esfera metálica. Busquei-a — independente de ter capturado ou não — e guardei no fundo da bolsa, aproveitando para ajeitá-la em meus ombros e o violino nas costas.

Não demorou muito e assim que ia retornar Manju, percebi que seu corpo estava envolto em uma aura cor-de-rosa. Imediatamente meus olhos começaram a brilhar e foi como se a Karinna interna e cheia de ódio voltasse para seu lugar num piscar de olhos. Um sorriso de orelha a orelha tomou conta do meu rosto, bem como uma expressão da mais pura e inocente felicidade. A raposa correu até mim também com o coração acalentado e assim que fora pular em meus braços como de costume, foi como se o tempo parasse por alguns segundos: um enorme brilho reluzente capaz de cegar temporariamente qualquer um tomou conta da Pokémon, que aos poucos começava a se moldar e aumentar de tamanho. Quando terminou de realizar o movimento, em meu colo agora estava um belíssimo Espeon, o qual sonhei durante minha vida inteira. Lacrimejei quase que instantaneamente, só dando tempo de encostar a testa na dela, dando-lhe um beijo no focinho.

— Filha, como você está linda! — apertei a psíquica com toda força do mundo — Que orgulho! — levantei-a no ar, segurando-a pelas duas patinhas dianteiras — Olha como você está grandona! — puxei a raposa de volta para mais um abraço, aproveitando para olhar em volta e ver que o rapaz ainda não havia voltado — Agora descanse um pouquinho, qualquer coisa te chamo de novo.

Assim sendo, retornei a mais nova psíquica da equipe para sua Pokéball e guardei-a com carinho na bolsa. Respirei fundo, percebendo basicamente que havia levado um perdido do suposto necromante.

— Que inferno. — bufei — Bom, de qualquer maneira o jeito é seguir para o Mt. Pyre. Ele que se foda. — pisquei para Sushi, que me respondia com um joinha — Vamos lá.

rota 121

Elfman não parecia se importar muito com meus atos de crueldade; na verdade, acredito que sequer tenha os visto, já que surgiu somente após a evolução de Manju. Mas sei lá, algo sobre esse rapaz ainda me deixa um tanto quanto inquieta. Talvez seja essa proximidade e tranquilidade diante da morte... Claro, já vi a foice do destino diante de mim tantas vezes que sequer me importo mais, porém não consigo agir tão plena assim. Bom, vai entender.

Retornei a psíquica e junto com isso acabei por seguir os comandos do grisalho. Caminhamos por alguns minutos até chegarmos a orla da praia; bem movimentada, o local parecia uma colônia de férias mesmo com todo aquele temporal, com treinadores aproveitando a água como se estivessem fazendo os característicos quarenta graus de Hoenn. O mar sempre fora algo intrínseco a mim, oras, cresci em Cianwood e Olivine, se não fosse seria um tanto quanto estranho... Mas essa correnteza e esse oceano furioso me traziam más memórias, uma vez que foi exatamente numa noite como essa que perdi o que mais de valioso tinha na vida. Meus dedos começaram a tremer, mas consegui me recompor quando Elfman mais uma vez falou.

— Fa-fazer a gente passar? — perguntei um tanto quanto curiosa — Com minha música? Seria possível? — olhei Sushi, que parecia encantado com a ideia — Bom, já vi de tudo nessa vida... — dei uma risada, retirando a case do instrumento das costas e me preparando para tocá-lo — Vai que dá certo.

Com um único movimento, posicionei a queixeira do violino nos ombros e encostei a cabeça no objeto com tranquilidade. Aproximei-me do mar com lentos passos, aproveitando para tirar meus sapatos no meio do caminho sem sequer me importar se os perderia e sentir o vento gélido cortante atravessar minha pele, com um cheiro tão nostálgico que poderia sentir o aroma dos bolinhos de chuva da minha avó que atravessavam a cidade toda vez que íamos pescar. Engoli seco, buscando o arco com a outra mão, situando-o sobre as cordas e esperando o momento perfeito para começar. Por algum motivo, meu coração começava a bater com rapidez evidente, tão nervoso quanto em minha primeira apresentação em Ecruteak com cinco anos de idade. A ventania quebrava um pouco do clima cinematográfico, com minhas longas madeixas voando sobre meu rosto descontroladamente... Mas não era como se me importasse. Paz. Era exatamente isso que eu sentia. Como se por um momento minha cabeça tivesse desconectado do mundo exterior e o mar e eu fossemos como um único ser. E talvez fôssemos: irritados e violentos porém profundos e com sua imensidão intacta ao ponto de ninguém nunca ter conseguido chegar às suas camadas mais abissais.

E assim meus dedos criaram força;

E a mágica aconteceu.

rota 121