Tive um sonho estranho naquela noite. Não foi como repousar, já que espíritos não dormem. Foi como pensar em algo futuro, um pensamento completamente possível. No sonho, uma sombra brusca apontava para uma espécie de par de chifres em forma de capacete. Uma outra sombra, desta vez feminina, pegava o capacete e colocava na cabeça da outra sombra. A primeira ganhava uma forma voadora, sumindo em meio do vento. Uma nova sombra se formava diante dos céus, trazendo algum objeto pequeno e pontudo. A sombra do objeto lembrava a velha coleção de pulseiras de Johannes Mitto.
Naquela noite, ventava como nunca. O luar nas nuvens escuras fazia com que corujas fizessem barulhos em galhos. Vários espíritos pararam naquela noite, como se não houvesse vida no mundo. O vento fazia sons fortes. As folhas das árvores caiam juntamente com pássaros indesejados pela terra.
Minha visão estava embaçada, era como se o mundo estivesse em uma catástrofe infinita. Senti como se uma presença amedrontadora se aproximasse, assentindo:
- Sei como se sente, jovem Tylor.
Minha visão permaneceu embaçada. Fiz esforço para visualizar melhor a alma que havia me chamado para um diálogo, mas não consegui ver. Uma fraca garoa começava a cair, atravessando meu corpo. A alma parava, e logo voltava a falar, desta vez com um tom mais baixo.
- Tenho uma missão para você, Tylor Roashta.
- Como sabe meu nome? – indaguei, começando a caminhar novamente.
- Não, não, fique. – disse a alma, tomando outra forma enquanto minha visão melhorava.
Senti como se meu cérebro inexistente começasse a funcionar, mandando um alerta para se mandar dali o mais rápido possível.
- Você é uma... Sombra?!
Comecei a me questionar sobre o que fazer. Minha visão já havia melhorado, dando a perceber que as corujas que me rodeavam estavam caídas no chão, imóveis. A chuva havia apertado, passando meu corpo com mais frequência. O vento continuava, mas numa forma de brisa, não levando a chuva, somente dando um ar de refrescante. A alma, invisível para mim em forma de corpo, mas não de sombra, começava a caminhar a meu redor, segurando uma chave.
- Você deve me conhecer. Oráto, Deus do Ouro, Deus das Almas... Alma mais rica do Mundo das Almas.
- Oh, sim... Assim como os outros deuses, você é invisível para um iniciante, deixando somente visível sua sombra. Eu devia saber... Mas o que um deus de extrema importância iria querer comigo, uma alma iniciante? – Falei, querendo despistar a minha sensação de medo.
Oráto era filho de Dimítrio, irmão de Cérgos e Méretos. Dimítrio era a única alma que tinha o poder de ser humano e alma ao mesmo tempo: podia ser humano e alma quando e onde quiser. Como um humano, Dimítrio se reproduziu com uma herdeira poderosa de uma grande família. Seu primeiro filho, Cérgos, nasceu intacto, perfeito. Méretos morreu ao nascer, mas não virou alma por algum motivo estranho. Já o terceiro filho, Oráto, morreu ao nascer, mas virou uma alma. Irritado por não poder conviver com Méretos, Oráto e Cérgos ao mesmo tempo, Dimítrio aprisionou Cérgos em um artefato que prende almas, passando a viver com Oráto no mundo inferior.
Muito tempo havia se passado, e Dimítrio havia se tornado o Deus das Almas, como um dono do Mundo das Almas. Oráto passou a ser o Príncipe das Almas, mas ser visto como filho poderoso não bastava, ele queria ser O poderoso. Na tentativa de aprisionar seu pai em um artefato capaz de sugar almas, Oráto acabou se aprisionando, liberando Cérgos.
Cérgos revelou ter uma alma diferente no Mundo das Almas: era uma alma dividida em duas partes: uma metade era obscura, com um ódio eterno, e a outra alma era calma, com a cor da vida. Dimítrio então entendeu que quando morto, Méretos adentrou o corpo de Cérgos, passando a dominar o lado maligno do filho perfeito. Cérgos passou a dominar o lado do bem, vivendo normalmente. Sabendo que podia correr perigo, Dimítrio aprisionou Cérgos novamente, liberando Oráto, mas alguma coisa havia dado errado. Cérgos não havia ficado preso, mas sim se unido ao artefato, sugando a alma de Dimítrio. Com vários poderes acumulados, o artefato explodiu, unindo as 03 almas em um só corpo.
Dizem que esse “corpo” – na realidade, alma – adormeceu por toda uma eternidade, passando o tempo todo dentro de um santuário. O lado negro de Cérgos passou a ser o Deus da Morte, absorvendo as almas que não cumprem o seu dever. O lado claro passou a ser o Deus da Vida, permitindo a entrada de novas almas no Mundo das Almas. O corpo de Dimítrio, que passou a ter um rosto no estômago de Cérgos, passou a ser o Deus dos Corpos, permitindo que as almas entrem nos corpos humanos e controlando se a alma se graduou ou não. Oráto, sendo único filho poderoso restante, virou o Deus das Almas, adquirindo o mesmo poder do pai: virar humano e alma respectivamente.
Oráto, sendo o único poderoso, virou ganancioso, roubando dinheiro do Mundos dos Vivos para o Mundo das Almas. Oráto virou uma alma renegada, fazendo maldades mundo a fora, impedindo com que as pessoas fossem do bem. Criou regras e leis para prejudicar seus fiéis, além de criar seu filho, Céh, como um escravo. Oráto passou a controlar as pessoas e mentir, adquirindo os títulos de Deus do Ouro e Deus da Trapaça. Boatos dizem que Oráto recruta jovens sem rumo para obedecer a suas ordens e missões, e depois que consegue o que quer, aprisiona-os no lado negro de Cérgos.
Sabia que Oráto era mau, e que se eu recusasse ou ignorasse seu pedido, sofreria 10x pior do que eu iria sofrer se aceitasse seu pedido. Sua sombra não era familiar e não recordava nada que eu havia visto, mas sabia que aquela sombra significava algo em meu sonho. Sua sombra parecia indignada, como se quisesse ir assistir a novela, mas não pudesse. Logo, a sombra soltou algumas palavras para quebrar aquele momento de silêncio.
- Cof, cof... Eu não sei, realmente não sei. Só acho que alguém com a capacidade de resolver um assassinato pudesse fazer uma missãozinha básica.
- Eu só resolvi o assassinato por que achei que seria uma falta de respeito não estar nem aí para a morte de sua vó e de sua namorada.
- ESCUTE AQUI, CRIADO – sua forma mudou novamente, assumindo uma forma que lembrava um gavião enfurecido -, VOCÊ OBEDECE AS MINHAS ORDENS E EU DEIXO VOCÊ VIVER AQUI. ESSA É A LEI, A LEI QUE EU, DEUS DAS ALMAS CRIEI. ENTENDIDO FORMIGA?
- Nã... – me interrompi. Mesmo sendo uma sombra, sabia o quanto poderosa essa sombra era – Vamos fazer assim. Você me diz essa missão, se eu achar que posso, eu faço, senão, vá arranjar outra alma. Há tantas almas por aí.
- EU NÃO PROCURO UMA ALMA QUALQUER E... Cof, cof... Bem, é uma missão extremamente importante.
O vento ficou mais forte, e a chuva continuou, mas desta vez tacada pelo vento.
- Vá ao Santuário Antigo e pegue uma caixa que tem lá. Abra com essa chave que lhe entregarei quando chegar lá. Pegue o que tem dentro e destrua. É só isso. Fácil e simples. Você tem 20 dias para completar a missão. Se não conseguir, não terá permissão de Dimítrio para adentrar um corpo e irá evaporar daqui.
- Mas senhor, você pode fazer isso e...
- NÃO ME DESAPONTE! – falou a sombra, desaparecendo.
Enfim, era um horror. Havia aceitado uma missão contra minha vontade enviada pelo Deus das Almas, estava com a pele invisível ardendo por causa da chuva e me sentia chocado ao ver aquelas corujinhas paralisadas no chão. Agora o que me restava era achar o paradeiro do tal Santuário Antigo.