[Gym Battle] Vs. Roxanne #49

Dei a impressão à Roxanne que não tinha objetivos; e era o que deveria parecer mesmo, de fato. Não revelaria à ela quais eram as minhas reais intenções: descobrir-me, saber quem realmente sou e poder ter ao meu lado o que as tormentas que assolaram Kanto tiraram de mim. Hoje, são apenas pontos brancos esparsos no anil escuro celeste, cabendo apenas que eu chegasse até eles.

Contudo, era uma via ímproba, incerta; as vezes, tenho a impressão de estar meramente devaneando e a incerteza estar bailando jocosa em meu consciente, brincando em tentar acender as chamas da esperança que um dia queimaram em minha alma. Foi como disse à especialista maluca que encontrei em Lavender: Esperança caiu, restando somente Dúvida — e todos os agouros que podem vir por esta.

— É um risco que eu preciso correr. Não tenho escolha — inferi ao ouvi-la, prestativa. Aqueles orbes rubros ainda buscavam uma ínfima brecha para adentrar meu consciente; possivelmente, repleto de boas intenções. Todavia, admito que sou alguém difícil de lidar e terei sempre um fantasma de arrogância em minha volta.

Assisti em posição neutra — a feição carrancuda e inexpressiva simultânea às mãos no bolso da calça — Relicanth estar prestes a cair. Roxanne insistia em seu golpe símbolo, diminuindo ainda mais a mobilidade já baixa de Slowbro; por outro lado, a estratégia estava dando certo como previa desde a primeira troca de golpes com Lileep.

Que venha o derradeiro monstrinho para que me sagre, enfim, portador da insígnia de Rustboro.

— Finalize com Psychic — uma única vez seria suficiente, entretanto, Slowbro arriscaria uma última vez em caso de algo dar errado. Um pouco de cautela nunca é demais.

Abdiquei da vida em determinado momento para que pessoas boas vivessem; e, assim que cheguei à Hoenn foi que pude entender os riscos que uma cruzada no colossal mundo pode ser. Acredito que deixar-se à sorte e à mercê de fenômenos naturais ou mesmo deixar que os incertos ventos do destino tomem o controle das ações é deveras ímprobo. Quando o fiz, não tive minha vida ceifada por causa de poucos segundos, restando uma ínfima sequela daquele fatídico acontecimento vivido aqui mesmo na cidade de Rustboro.

Mas, não, não era o único risco que corria. Testava-me nos desafios de ginásio por serem um termômetro de minha força; já estou em um caminho sem volta, tendo algum líder rocket que desconheço em guerra pessoal contra mim, com possivelmente pessoas ao meu redor ao qual prezo muito estando em risco. Ser forte deixava de ser uma ambição para ser necessidade. Ademais, é utopia acreditar — quiçá, mentir para mim mesmo — que deixarei de lado minha vingança contra estes malditos criminosos que lancinaram a pobre Emma ou mesmo descobrir quem é esse tal mestre H. Se tem uma patente relevante entre os criminosos, com certeza é poderoso; tenho de ficar em pé de igualdade para confrontar esse maldito um dia.

Foi necessário mais um único ataque para que Relicanth se exaurisse. Slowbro concentrou sua energia rosácea, libertando-a na forma de onda de choque; com o impacto, o fóssil estatelou no chão já desmaiado, decretando minha segunda vitória no desafio.

Disperso com a batalha, tardou um pouco até a minha visão perceber alguns lampejos próximos não somente à minha cabeça, como também a de Roxanne. Em dança infante, uma luz percorria a arena por todos os seus limites, dançando, tão bela, remetendo às estrelas que adornam o firmamento, cuidadosamente pincelado em anil. A presença revelava-se, enfim, deixando-me boquiaberto com a visão que meu cérebro processara. Taciturno, senti a respiração vacilar por ínfimos segundos, deixando o diafragma e a caixa torácica moverem-se em velocidade incomum; os pelos eriçavam-se simultâneo a um arrepio excêntrico subindo minha coluna vertebral.

Fui tomado por uma euforia moribunda — busquei abafá-la ao máximo. Por mais que sempre acreditei na existência dos lendários, jamais havia encontrado um em minha vida; aliás, foi inclusive uma destas míticas bestas que devastou minha cidade natal e, com ela, sepultou uma alma tão jovial e repleta de júbilo. Agora, completamente o oposto, a presença incomum em nuances luminosos viera ao meu favor.

O lendário que, segundo as lendas, realizava os desejos daqueles que o viam: Jirachi.

Tateou minhas bochechas, pueril e brincalhão, deixando sua luz ímpar contornar seu corpo tal qual uma aura. Via em Jirachi um reflexo que, desde quando deixei minha terra natal, nunca ostentei um júbilo tão grande como o que sentia agora; as brasas tão relutantes dentro de minh’alma começavam a crescer, súbitas, e iniciar sua dança enérgica acalentando — ainda que pouco — o consciente que tanto se lancinou ao longo de ínfimos meses. Deixei os lábios colarem-se em um sorriso no canto da boca, jocoso, cintilando os orbes oceânicos diante da luz manifestada em minha frente. Se me sentia vazio, quiçá, aquilo que pediria poderia me deixar completo novamente.

— Eu... eu... — relutei, como nunca dantes. Poucas lágrimas transbordavam da prisão de carne, rolando, faceiras, em seus meandres no destino em que a gravidade as chamava. — desejo saber onde estão os meus pais... e o Hendo também.

Era uma faca de dois gumes: ou todo o pesar do mundo desabaria sobre minhas costas ou veria nuances daquele garoto que sempre cultivei em Pallet. Ainda que em infância nunca fui dos mais simpáticos, confesso que a amargura me deixou ainda mais difícil de lidar; sorria, brincava, e hoje, sou apenas uma casca mórbida e carrancuda — isso quando Emma não está próxima para tentar acalentar-me. O papai, a mamãe e o Hendo eram de importância singular, e não os ter ao meu lado durante esse tempo foi difícil de engolir. Apenas necessito revê-los, nem que seja uma vez mais.

Eu preciso disso mais do que nunca.

Devaneei demais por estar cego diante da nostálgica luz lançada por Jirachi. Recobri a consciência no momento em que a esfera bicolor de Roxanne libertava o seu monstrinho assinatura, o derradeiro do desafio: Nosepass. Pokémon marca do ginásio de Rustboro, o rochoso era uma das minhas principais dores de cabeça quando pensei em desafiá-la, contudo, diante de tudo o que Slowbro mostrara no desafio, poderia vencê-lo — ainda que passasse algum aperto.

— Water Pulse, duplo — ordenei, ainda que estivesse divagando acerca da figura do lendário que até mesmo tateou minhas bochechas. Espero que ele, em sua misericórdia, compreenda o quão aquele desejo tão singelo era importante para mim.

Era uma sensação... excêntrica. Nem tão palatável, muito menos amarga. Em um lampejo, senti meu corpo ser transportado por Morpheus ao mundo onírico, onde, por meio de flashes, tinha visões incomuns.

Pacifidlog, uma cidade bem afastada e pacata de Hoenn; conhecia-a pelas residências típicas da vila pequena, onde basicamente vive-se da pesca e do comércio dos mesmos. Engraçado como o papai mudou de profissão assim tão rápido — mesmo que seja para sobreviver. Quiçá, aquele tempo em que passara no barco e a necessidade de manter não só a mamãe, como também os pokémons que tínhamos foram as forças motrizes para tal. Pergunto-me se eles estão sentindo a minha falta, ou me dão como morto, restando a conviver com o luto e uma lacuna por pensarem que já não estou mais entre os vivos. É certo que, hora ou outra, terei de revê-los, não apenas por eles, mas por mim também. Dei minha vida por ambos, e minha recompensa viera agora ao saber que meus esforços não foram em vão. Sorri, jocoso, aprazível: aquela sensação acalentava-me demasiadamente; era como se uma das lâminas que haviam perfurado minh’alma fosse retirada de mim.

A segunda memória, todavia, persistia em lancinar-me, como um chicote golpeando as costas nuas em força máxima: aquele que em algum dia chamei de irmão, que dividi experiências tão excêntricas e aprazíveis e que partiu, prometendo-me que iríamos nos reencontrar e batalhar como bons amigos, cedeu às sombras mais funestas. Titubeei. Os lábios descolaram-se com o queixo pendendo ao chão, e os oceânicos olhos refletiam a aflição, e os agouros que revivi ao lembrar do incidente em Saffron. Seria possível que a única vítima foi justamente a tia, e o desaparecido foi o Hendo, volvendo como um rocket e atendendo pelo nome de “Mestre H.”? Não, é impossível; James sempre foi alguém que prezava pela bondade e rodeado de ingenuidade. O coração em que a justiça era tão afiada tal à lendária lâmina de Excalibur. Recuso-me com todas as forças acreditar que tenha pendido ao nefasto lado daquela maldita organização criminosa.

Dizem que os lendários são dotados de sabedoria infindável e quiçá até mesmo gozam da onisciência. Neste momento, a única coisa que pude fazer foi desprezar aquela maldita visão entregue por Jirachi. Não, Hendo jamais seria um rocket, ainda mais declarando guerra pessoal contra mim. Recuso-me a pensar que quem algum dia considerei como irmão, hoje quer a minha cabeça e ousa ameaçar o único abrigo animado que conquistei desde que perdi tudo; é mentira que o Henderson virou um rocket, a tia jamais permitiria, e ela não pode ter sido a vítima daquela noite. Não, de maneira alguma. O monstrinho estelar estava a pregar uma peça em minha consciência; uma travessura, surpresa de halloween atrasado.

É... mentira. Só pode ser mentira...

Desvencilhei-me das amarras das lembranças. A respiração desordenada, boquiaberto, ainda assim taciturno; o tórax movia-se, completamente descompassado. Sentia-me esbaforido, e mesmo que tentasse, os orbes cerúleos revelavam tão límpido quanto o céu de um dia de verão todos aqueles agouros que outrora soterrei nos confins de meu âmago. Recobrei a consciência quando os ventos evocados por Nosepass, liberado por Roxanne, tomou a arena. Ouvi suas indagações sobre eu ter visto, e, bom, acho que minha reação por si só respondia.

Levei a mão a cabeça, buscando digerir aquele sabor tão amargo da última visão. Desliguei-me por ínfimos momentos do combate, apenas volvendo quando Roxanne dera os comandos já seguintes ao seu Nosepass. Com um olhar de relance, a fruta que portava consigo fora consumida após os danos causados pela sequência super efetiva de Slowbro, indicando que, apesar da tempestade de areia — e se os golpes entrassem, superando a condição de paralisia —, não tardaria em acabar com aquele embate.

— Water Pulse mais duas vezes — soprei ao aquático, ainda tentando tornar a respirar normalmente. Fora um baque absurdo, e tenho a completa noção de que poderia me atrapalhar no combate. Mas, que seja...

Maldito Jirachi.

Merda. Devia ao menos ter disfarçado melhor. Diante da única expressão que fiz assim que recebi as visões do lendário, soma-se à respiração caótica e a nítida incredulidade — com uma pitada de temor. Prezei sempre por estar com a guarda aberta, e Jirachi conseguira fazê-la baixar mesmo que por um ínfimo instante, o suficiente para que Roxanne indagasse se estava tudo bem.

Sabia que era necessário pedir isso ao lendário, contudo, não estava preparado para aquela resposta.

Ah, caralho. Foda-se tudo isso. Chacoalhei a cabeça em movimento horizontal, despertando novamente para a tempestade de areia evocada por Nosepass.

— Tá tudo bem sim, não foi nada demais — busquei, ao máximo, recobrar aquela postura sisuda e inexpressiva que me era tão intrínseca. Semicerrei os olhos para que os grãos de areia não penetrassem em meus olhos, percebendo que, após mais um turno, Slowbro movera-se apesar de sua paralisia. Era necessário atingir um único golpe para que, enfim, o desafio acabasse; diga-se de passagem, uma performance que me impressionou do aquático. — Acabe com isso com Water Pulse. Em sequência! — brami ao psíquico, entonando a voz de modo que parecesse mais robusto; não posso deixar transparecer que estou estupefato e quiçá arrasado com aquelas visões.

Não posso deixar que aquilo me abalasse no clímax da batalha. Pedia, dos confins de minh’alma que Jirachi estivesse errado; e ele está. Sempre fui cético em relação a tudo, e mesmo que o lendário fosse agraciado por Arceus com o dom da onisciência, não acreditaria naquilo.

Jirachi está mentindo, não é, Hendo? Um irmão jamais juraria guerra ou mataria ao outro.

Acabou. Mesmo recebendo um dano irrelevante para a sua vitalidade excelsa, Slowbro era decretado o vitorioso com o lançamento das vibrações aquáticas comprimidas em uma única espera, condensada em suas mãos, explodindo sobre Nosepass e desvencilhando toda aquela pressão colossal, exaurindo as energias da rocha magnética. Assim como Roxanne recolheu o seu monstrinho, fiz o mesmo com o meu aquático sem delongar-me muito.

A líder entregava-me a primeira insígnia da liga de Hoenn, parabenizando-me e desejando sorte para as cruzadas posteriores ao nosso embate; quiçá, creio que precisaria mesmo: tenho um rocket de patente alta na minha cola — recuso-me a acreditar que seja o Hendo — e inúmeras ambições para satisfazer ao meu ego.

— Obrigado pela batalha — agradeci conforme Roxanne dava as costas, dirigindo-me à recepção retirar o restante de meus prêmios. Retirá-los-ia, seguindo com Xatu para Mauville.