Pai, posso ir?
Episódio 0
"Um dragão no céu!", meu pai gritou da janela.
Eu e meu outro pai nos olhamos com medo achando que era o começo de mais uma poesia sem graça, mas quando larguei o desenho que eu tava fazendo e olhei no horizonte, tinha mesmo um dragão no céu. Acontece que isso é bastante comum quando se vive em Blackthorn -- o que não deixava de ser uma visão interessante. Nós três e a Nevasca assistimos com encanto enquanto o Pokémon laranja e barrigudo sobrevoava plenamente as montanhas... até começar a ziguezaguear descontroladamente e cair em alta velocidade numa floresta próxima.
"Ai", eu disse.
"É aquele Dragonite que evoluiu outro dia?", meu pai indagou.
"Pobrezinho", meu outro pai suspirou. "A Clair tá sofrendo um dobrado pra treinar esse. Os coitados dos Dragonairs não estão acostumados a ganhar asas assim do nada."
"Bom", comecei, cruzando os braços. "Eu ficaria muito feliz de ganhar asas pra finalmente pode sair daqui", resmunguei e fui batendo o pé de volta pro meu desenho.
Meus pais ficaram em silêncio por um momento enquanto se sentavam ao meu redor na mesa de jantar. Continuei rabiscando com meus giz de cera multicoloridos. Depois de alguns momentos, meu pai falou:
"Lola, querida, nós já falamos sobre isso", ele começou, olhando pro meu outro pai em busca de suporte. "Uma jornada pelo mundo é uma aventura muito perigosa, e você é apenas uma criança. Seu pai e eu temos medo de algo acontecer."
"Mas, pai, você tinha a minha idade quando virou um mochileiro!"
"É verdade, Steve", meu outro pai disse, se arrependendo no segundo seguinte pois logo recebeu o olhar de De-que-lado-você-está? Era um olhar que eu só via nas raras vezes em que um deles me liberava de algum castigo sem o outro saber. Ele tentou revidar com o olhar de Claro-que-é-do-seu-meu-amor, mas sem muito sucesso em ser convincente.
"Além disso, agora eu tenho a Nevasca!", apontei pra Swinub que corria alegremente ao redor da mesa. Ela parecia perseguir alguma coisa invisível (talvez o próprio rabo?) alegremente, até bater com o focinho em uma das quinas. Swinubs tinham os olhos fechados, afinal. Mas sem que isso a parasse, Nevasca voltou a rodopiar pela mesa como se nada tivesse acontecido. Nós três nos entreolhamos tendo certeza de que ela não era a parceira mais confiável, mas não deixei que isso me abalasse e corri pra mostrar meu desenho recém-finalizado: "Olhem, pais!"
O desenho representava Nevasca e eu cruzando uma estrada com vários Pokémon sorrindo e fazendo cirandas ao nosso redor, com o título multicolorido em letras garrafais em cima: A AVENTURA SUPERLEGAL E COMPLETAMENTE SEGURA DE LOLA E NEVASCA!!!
Meu pai suspirou, deixando um sorriso escapar.
"Steve", meu outro pai começou. "Eu tenho visto na televisão, é super comum crianças de 10 anos saírem em jornadas com seus primeiros Pokémon. Outro dia vi uma mãe lá de Kanto dando um depoimento sobre como o filho dela até venceu uma Liga inteira! Apesar de que não é possível ele ter só dez anos com aquele tanto de insígnias...", ele se distraiu por um momento, mas depois continuou: "Nós dois sabemos que as montanhas de Blackthorn não são o suficiente pra segurar essa pestinha", e piscou pra mim.
"Carl..."
Meu pai ficou pensativo por alguns segundos e essa foi minha deixa; me debrucei na mesa e comecei a implorar sem cerimônias. "Pai, me deixa ir, por favor, por favor, porfavorporfavorporfavorPORFAVORPORFAVORPORFAVOR", eu continuei, pegando Nevasca no colo e balançando-a próxima da cara dele. "PORFAVORPOFAVORPORFAVORPORFA--"
"Pelas barbas do Ursaring, quem você puxou?!", ele se inclinou na cadeira, quase caindo. Deu um último sorriso pro meu outro pai, até que se deu por derrotado. "Tá bom, tá bom, eu deixo!"
Demorei alguns instantes pra entender que ele havia deixado em meio minha gritaria. Meus olhos brilharam e eu pulei da cadeira, girando com Nevasca nos meus braços e cantarolando.
"Mas antes", meu pai sussurrou com um tom cortante e sério que me fez parar. Ele olhou pra mim e pro meu outro pai e cruzou as mãos na frente dos olhos como alguém prestes a revelar um plano pra dominar o mundo. "Terão que ouvir... minha nova... poesia."
Foi nossa vez de suspirarmos derrotados... menos Nevasca, que pulou do meu colo e voltou a correr ao redor da mesa, distraidamente atrás do próprio rabo.
Última edição por Säga em Dom 26 Nov - 18:09, editado 4 vez(es)
