001 - PRINCIPIUM

Ledo engano, Karen. Todos ali ouviram e repararam sua saída; alguns até se preocuparam. Ela era a detentora do coco, do ritmo, da bola; não sairia sem ser notada. O primeiro a perceber foi sem dúvidas seu Passimian, mas ao vê-la bebendo água, entendeu bem a situação e apenas voltou ao seu gingado único. A segunda foi Mora; que numa empatia feminina, decidiu ir se certificar de que nada aconteceu com ela. O terceiro? Zumbi, mas ao ver que Mora já tinha ido, deixou de lado o impulso e fora para perto de Arthur, brincar um pouco até sua coluna bicar e ser obrigado a sentar no chão.

O copo que Karen tomou?! Sim, era água. Enquanto engolia devagar aquele líquido, via Mora aos poucos se aproximando; já devia imaginar o destino final da moça, que ao chegar bem perto da protagonista e da mesa, pegou um punhado de queijo-fresco com ervas e fora colocando de dois-em-dois cubos na boca:
- Ta tudo bem?! Aconteceu alguma coisa?! - Bem... talvez essa não era a pergunta que queria fazer; olhou para o núcleo em que dançava e viu nele vários desconhecidos à Karen, pessoas que ela não tinha motivo para confiar - Alguém fez algo com tu?! - Agora sim, a pergunta certa.

Independente da resposta, Mora se compadecia com a moça; oferecia-a um punhado de queijos também e esperava que aquilo iniciasse uma conversa simples e que logo voltassem para o espaço-aquecido-da-fogueira... até porque, fora dele parecia meio frio.

A moça sorria com o indicativo positivo e colocava mais alguns petiscos na boca. Muito daquilo ela era responsável pela feitura, nada melhor que aproveitar de seu próprio trabalho, não?! Pegou mais uma fritura ao canto, aproveitou um filé de peixe próximo e ficou em silêncio enquanto pensava numa resposta digna para dar à Karemachena. Não digna no sentido de "verdadeira", mas digna no sentido de coerente. No fim Mora também não viu o que Karen viu; era difícil falar sobre experiências alheias, mas poderia dar um palpite:
- Bem, tu já deve saber que só quem sabe o que viu é tu mesmo - Ok, a introdução não começou muito bem, ainda assim ela continuou - Eu posso supor que como você é de luz, absorveu muita coisa que Karamakate te passou. Você deve ter algum tipo de mediunidade, sabe?! Não deve ta despertada mas talvez por isso você pegou esse tipo de cena. Eu não sei o que é um pokemon verde com lâminas, mas posso te dizer que eu tenho um filho mais velho que foi criado comigo, Kara e um Gallade. Ele era tudo Lecca é para meus pititicos hoje, sabe?! Uma espécie de pokemon bem apegado, paizão, levava pra brincar... bem, deve ser os dois que você viu.

Ao dizer isso, a moça pausou. Ela não parecia nada melancólica, mas queria encher seu copo com um pouco de cerveja antes de continuar a história. Foi até o canto da enorme mesa, encheu seu copo e retornou, dando um longo gole, olhando de volta para os olhos de Karen e retornando à prosa:
- Mabel o nome dele, ele foi pra cidade estudar. Ele até podia estudar lá e viver aqui, mas foi ficando difícil, ele tava perdendo muito... como é que chama?! Estágio eu acho. Não sei, é trabalho com estudo, sabe?! Ele fazia medicina-pokémon, hoje já é formado. Trabalha lá no centro pokémon eu acho - E ai dizer isso, tomou mais um gole - Quando ele parou de ter tempo pra vir, eu comecei a ir direto pra lá, entregava recados e notícias... só que com o nascimento de Davila ficou difícil pra mim, eu não vou pra cidade faz uns sete meses e to sem notícia de Mabel. Como ele e Kara só brigam quando ele fica aqui muito tempo, ele não aparece muito... Zumbi já te pediu pra mandar as notícias né?! É só isso mesmo, é só pra falar pra ele vir que ele tem um irmão novo. Ele foi pra lá com o Gallade, eu sinto saudades dos dois.

Mora havia falado muito mais de si; apesar de não perder o sorriso da face ou o tom descontraído, a conversa tinha um tom de desabafo incomum da trama, o que fazia a líder-de-família esquecer por completo a segunda questão de Karen. Quando relembrou, tentou retornar o assunto, mas não tinha muito o que fazer:
- Sei não, moça. Esse quilombo é muito velho, dizem que anos e anos atrás ele foi fundado por escravos que fugiram do trabalho na floresta. Tinham grandes madereiras aqui e a maioria delas foram destruídas alguns anos depois. Parece que muito dos nossos barracos foram desses materiais que usaram de novo, sabe?! Talvez o que tu viu é só mais um resto disso. Não sei - Pausou, engoliu a seco e repetiu a frase com que começou aquilo tudo - Só quem sabe o que viu é tu mesmo.

Para tudo que foi dito por Karen, Mora tinha apenas uma resposta; dar de ombros. Não sabia muito bem o que responder, até porque, já falou tudo que sentia que a menina deveria saber... talvez até mais. Virou o resto do conteúdo de seu copo e num ato previsível, pegou outra cerveja. Deu mais um belo gole e deu uma única resposta, entre as mil coisas que Karemachena falou:
- Talvez você não tenha nada importante no seu passado para visitar... - Isso podia soar ofensivo?! Bem, para uma pessoa comum talvez, mas não para Mora. Para Mora, não ter um passado muito badalado era um grandíssimo privilégio e um enorme elogio - Ai fica visitando o dos outros.

Bem, errada não tava. Karemachena não era uma menina que passou por muito no passado; na verdade, mal tem passado! A menina ta ali na casa das duas décadas, mal chegou a vida adulta! Acabou de sair de casa; grande parte da sua história nem sequer são suas, são de sua família. Sabendo que muito provavelmente estava certa, Mora se aconchegou naquela mesa, ficando de costas para o objeto e apoiando suas costas na madeira-esculpida do móvel. Jogou seus braços por cima do tablado, dobrou seus cotovelos e se inclinou para trás, olhando a fogueira de uma posição clássica-de-gente-bêbada, mas ao mesmo tempo extremamente confortável.
- Você vai voltar para lá?! To meio enjoada, acho que vou comer alguma coisa doce antes de ir - Disse isso mas não ameaçou sair daquela posição para pegar doce algum - Você não ta bebendo, né?! Nem sei se tem idade, mas não sei se fica muito divertido para uma menina-urbana passar por isso sóbria.

Fora no meio dessa conversa um pouco estranha que os olhares se cruzaram; Zumbi ao fundo viu a expressão observadora e quieta de Mora, sorriu para as duas e deu um aceno. O homem não sairia dali a menos que fosse chamado; Mora não o convidou para se juntar, ficaria a cargo de Karen decidir se aquela conversa continuava só entre-mulheres ou não.

- Oh, ele foi eleito para ser líder... Sabe, voto aqui é pra tudo... aqui a gente tem de tudo, é todo mundo bem cheio e diferente, então acaba que tudo termina em votação - E ao dizer isso, começou a andar em direção a fogueira - Ele acaba arrumando e resolvendo tudo com muita sabedoria. Ele não ta no quilombo desde que nasceu, na verdade, ele chegou a aqui tem uns dez anos só... veio de uma viagem igual você e decidiu ficar... ai todo mundo gostou dele. Não tem explicação, a gente respeita porque ele merece e é isso e pronto.

E lá ia Karen se frustrando mais uma vez; talvez esse local fora um dos melhores espaços para quebrar a expectativa da jovem. A cada vez que ela lançava uma pergunta e esperava uma resposta cósmica, mística ou elaborada, recebia o seco e óbvio "normal". Era sim... um grupo de pessoas normais; ninguém ali fizera nada muito exótico na vida. Ora ou outra recorriam a espiritualidade, mas viviam sem muitos problemas, sem saber de lá tantas coisas e, principalmente, com relações bastante normais.

Talvez Karen estranhe o fato de ninguém ter tanta segurança em suas respostas, mas há mais realidade do que isso?! Não posso lhe dar todas as respostas; caso contrário, estarei fazendo um conto de fadas. Para a quebra de expectativa da menina, assim como no mundo real, não é todo o morador que conhece a história de sua cidade, não é todo o líder que é místico e destinado e não é todo o espaço cultural que é uno. Democracia se engendrou em grande parte do mundo; o Quilombo viu nela uma forma de se resolver, e agora Zumbi era um líder carismático, que ora ou outra se perdia e se achava.

Pois bem, com preguiça de continuar o debate em torno da realidade do quilombo, narro aqui a volta à fogueira, que já parecia um pouco mais parada. Nesse momento Zumbi já começava a sentir suas costas e pensava que era hora de parar; ainda assim havia feito uma promessa à Karen, então a iria cumprir antes de se deitar. Andou até a menina, abriu um sorriso singelo e disse:
- Vamos lá?! - Estendeu a mão esquerda, a convidando para pega-la e ir para uma breve (e última) caminhada.

A despedida era de toda uma fofura. Todos ali se sentiram agraceados pela moça, até mesmo que nada lhe fez; um amontoado de pessoas se formou ao seu redor, contando Karamakate, Mora, Lecca, Machoke, as pessoas que outrora estavam em roda com Zumbi, dois filhos de Mora e mais umas três pessoas que Karen não falou diretamente, mas estavam ali na dança. Esse amontoado se juntou e sufocou nossa protagonista com o que chamaríamos de... abraço em grupo?! Pois é, era algo do tipo. Um suado e caloroso gesto de carinho que nada precisava ser dito.... apenas um "obrigado" em coro era suficiente! Feito isso, a garota foi ao encontro de Zumbi e logo mais foram andando em direção à Petalburg.

O Líder sabia que sua caminhada não levaria mais de dez minutos com a moça, então tentou ser breve em sua despedida. Foi até o canto da mesa, pegou um pequeno pacote e deu a ela como recordação. Nem sequer esperou a menina pegar e já disse:
- Eu sinto que você não vai voltar tão cedo... eu sei como o mundo lá fora é corrido e tudo acontece muito rápido - E ao dizer isso, olhou ao chão - Eu já vivi nele. Só peço que não se esqueça e volte de vez em nunca, ta?! A gente não vai se esquecer de você - Zumbi não queria parecer grosseiro, só sincero.

Ele não estava de todo errado; logo mais Zumbi ia entender que o calendário de um treinador é muito agitado. Poucas são as vezes que a garota terá tempo para visitar um amigo ou parente; isso faria dela uma figurinha rara no quilombo, mas sem dúvidas seria muito bem vinda caso voltasse. Pois bem, não querendo que esta fosse sua última frase, o homem decidiu dar uma despedida mais "aconchegante" quando enfim começaram a se distanciar da tribo! Próximo dos quinze minutos de caminhada, já viam a plaquinha com o indicativo de "bem vindo a Petalburg", que sinalizava a entrada da cidade com um posto policial à deriva. O homem então virou-se para a garota, deu-lhe um abraço apertado e disse:
- Boa vida - Entregou-lhe o bilhete e partiu.

Aqui é importante rememorar que Karen saiu dessa viagem com quatro coisas, e ainda não sabia o conteúdo de nenhuma das quatro.
A primeira era um Ovo de pokemon. A segunda a carta de Mabel que ainda não havia lido. A terceira o bilete de Zumbi. A quarta era o presente que o homem acabara de lhe dar.

Pois bem, algumas desses coisas não eram de tão fácil acesso, de fato, mas as que poderia abrir, ler e descobrir, não abriria? Zumbi já ia embora, voltava à tribo e iria perseguir uma rede para dormir... talvez assim sua coluna pare de doer.

OFF: Faz um último post, de preferência descobrindo as coisas, eu te conto o conteúdo, tranco a rota, te atualizo e te libero pra Petalburg :>