Lá e de volta outra vez

O reforço chegava, e era muito bem vindo, obrigado! Woobie foi com o gigante pré-histórico buscar terra em outro lote, enquanto Yanma e Archen trabalhavam juntos para cobrir os buracos antes da chuva. Demorou um pouco, cerca de uns 30 minutos, mas eles, enfim, terminaram! Claro, não ficou aquela obra perfeita, já que nenhum deles possuía polegares opositores ou eram do tipo terreno, como o pequeno infrator que fez aquela bagunça, em primeiro lugar! Mas a criadora poderia ficar tranquila sobre o receio de ter um novo lago em um local inapropriado de sua fazenda!

Bem, serviço terminado, dia um tanto mais escuro que o normal, graças às nuvens carregadas, estas enfim não suportam o volume de água e começam a precipitar timidamente. Os Pokémon correm para se abrigar, dando aquele dia já como finalizado e preparados para descansar, um novo dia irá nascer após aquele! E Kiki? Qual seria o seu itinerário da noite? Banho quente? Comida gostosa? Vinho? Chá? Possibilidades, possibilidades!

Ah, a tranquilidade de poder descansar depois de um dia longo de trabalho e altas emoções! Recolhendo todos os seus parceiros e ajeitando o ninho que Fletchinder usaria para chocar o egg, o caminho era direto para o banheiro, para as águas quentes e relaxantes. A chuva começava a cair, constante e em um fluxo bem forte, mas não chegava a ser uma tempestade. Era só uma chuva torrencial que  provavelmente se acalmaria, formando a famosa garoa até o amanhecer do dia seguinte. Mas isso não era uma preocupação para a criadora, não senhor! A única regra daquela noite era: relaxar!

Banho tomado, camisola vestida, roupão sobreposto, o jantar foi uma boa releitura do almoço, com a salada fresca, talvez alguma proteína… ah, claro, carboidratos! Mas não em excesso, afinal, ela não queria umas gordurinhas localizadas indesejáveis, não é? Refeição preparada, alguns tira gostos, chá E vinho, afinal ela pode, e um bom programa na TV!

De fato, o cansaço começava a bater na porta da consciência da garota. Um programinha lé-com-cré qualquer na TV, o cansaço somado a inebria do vinho junto com a pacificação do chá, era quase que uma chuva de Sleep Powder direto na cara! Mas como diria o filósofo Joseph Klimber, “a vida é uma caixinha de surpresas!”. Antes de conseguir pegar no sono, ela começou a ouvir um som de algo raspando a porta. Poderia ser um de seus Pokémon, querendo a companhia de sua mestra, mesmo estando ensopado, ou poderia ser… bem, se a criadora quisesse se levantar e ver o que causava esse som, a única coisa que conseguiria ver é um grande e felpuda cauda castanho-claro balançando…    

Kiki estava em um momento de confusão e indecisão, já que o egg sob Fletchinder estava quase nascendo, e agora havia um som esquisito em sua porta! Soltando a coberta, munida apenas de seu roupão e sua camisola, ela abre a porta, para saber quem estava, enfim, fazendo aquele som. E ela da de cara com, nada mais, nada menos, que um Eevee! Sim, um pequeno Eevee com uma Everstone pendurada no pescoço!

Espera, onde ela já viu aquela Eevee? A pequena raposa de cauda felpuda chacoalha seu corpo para retirar o excesso de água e senta-se diante da porta, soltando seu característico som meio uivado, olhando para a criadora. E então, como uma assombração vinda das profundezas do vazio, uma figura, completamente ensopada da chuva, caminhava mancando em direção à porta. Ela não vestia mais o uniforme dos RR, estava com uma roupa de enfermeira e um jaleco. Por ser de cor branca e estar toda molhada, o tecido contornava todas as curvas e traços do corpo da garota, revelando todo seu tipo esguio e o ferimento no joelho. Apoiada em um pedaço de pau bem robusto, ela enfim chegou até à luz da casa de Kiki. Ela sorria, em um misto de jovialidade e alívio. - Oi vizinha! Tem um pouco de açúcar? - aquele sorriso… aquele maldito sorriso! Como a grunt que Kiki levou para o hospital mais cedo tinha chegado até ali? Como ela encontrou a casa de Kiki?? Como???    

Fração de segundos. Como a noção de tempo poderia mudar tanto assim em uma variável ou outra. Tome como exemplo o cotidiano. Uma aula chata de cinquenta minutos pode durar uma tarde inteira, ao passo que um bom filme de uma hora e cinquenta dura poucos minutos. Depende do seu estado emocional, mental, físico, comprometimento, atenção, etc, etc. Aquelas frações de segundos duravam minutos, ou mais. Outro exemplo? Enquanto a porta era batida com força, Kiki teve a legítima visão de ser a Eevee tombando a cabeça para o lado, confusa, enquanto a garota projetava um começo de expressão de pânico ao ver a reação da criadora. Como isso tudo pôde ser captado em uma fração de segundos? Não dava para saber, mas aconteceu. Não era impressão ou alucinação, era realidade.

Claro, poderia ser um sonho. Kiki poderia ter dormido no sofá com o programa na TV, e aquilo seria o princípio de um pesadelo. Mas era tudo tão real… como? A palavra ecoava na mente da criadora, reverberando por todos os cantos de sua mente. Rotom Phone… é incrível como coisas tão frívolas de nossa vivência desaparecem quando mais esperamos. Mas havia uma IA dentro do aparelho, que estava sob as camadas de tecido da coberta. - Realizando chamada! - a mensagem sonora surgia no aparelho. Soren se colocava em posição de alerta, e a garota não via suas pokébolas! E agora? E AGORA?

Batidas fortes na porta. Fortes e desesperadas. A grunt sabia que a porta não estava trancada, mas ela ainda assim batia. - Por favor! Por favor, não! - ela gritava do outro lado. Sua voz tinha tons de desespero e choro que só uma atriz de ponta poderia reproduzir. Ela seria tão dissimulada assim? - Eu não tenho mais ninguém! Eu só tenho você! Eles vão me matar se voltar! - ela batia enquanto falava, a voz embargada pelas lágrimas e pelo desespero - VOCÊ DISSE QUE NÃO ME DEIXARIA SOZINHA! - era um grito de catarse, um pedido de socorro, um alerta de pânico ou desespero, entenda como quiser. A lembrança das palavras de Kiki para ela, enquanto entrava na ambulância somava ao coro do “Como?” dentro da mente da criadora. Por um momento, parecia que tudo tinha ficado em silêncio. Só cinco sons podiam ser ouvidos: a batida no coração de Kiki, as patinhas de Eevee raspando na porta, o choro da garota na porta, as gotas de chuva na janela, e… - 911, emergência, em que posso ajudar? - a atendente da polícia no Rotom Phone. Kiki tinha uma decisão em mãos, continuar a chamada ou atender à porta. O destino e duas vidas estavam em suas mãos.      

Uma escolha era feita, uma decisão tomada, destinos selados. Kiki completou a chamada para as autoridades e passou o endereço de sua propriedade. A garota do lado de fora ouvira tudo. As batidas na porta pararam. O som de algo pesado deslizando pela madeira era ouvido. Um choro triste, desesperado, sentido, escorria junto da água da chuva. Kiki se aproximou da porta e tocou na maçaneta. “Fuja. Fuja para longe. Fuja de volta pra onde veio”, essas palavras dilaceraram a garota por dentro, a destruíram. Bem, não que Kiki se importasse com isso. Não, para a criadora, aquela figura nem humana era. Era uma aberração, uma anomalia, alguém que não deveria sequer existir. Como sua terapeuta lhe ajudou a absorver, nem eram pessoas, uma não existência. O pânico tomou conta do peito e da mente da criadora, e ela se firmou no que considerava mais sólido e mais seguro.

Assim que trancou a porta, duas batidas violentas quase romperam a estrutura de madeira. - DEVOLVE A MINHA AMIGA! - a garota gritava, a plenos pulmões, com aquele tom que só a ira somada ao desespero poderia proporcionar. - VOCÊ DEVIA TER ME DEIXADO MORRER! POR QUE ME SALVOU? POR QUE? - outros gritos, mais e mais forte. Mas Kiki não se importava. Ela já tinha tomado sua decisão. Sons eram possíveis de serem ouvidos do lado de fora. Era um tipo de.. batalha? Será que os Pokémon de Kiki emergiram para proteger sua casa e sua mestra? Mas novamente, ela não se importava com aquela… coisa. Diante de si, junto de suas coisas, a criadora percebeu algo junto das roupas que usou na manhã e na tarde anterior: uma pokébola roxa e branca com um “R” colorido estampado. E lá fora, os sons continuavam. Até a polícia chegar, talvez não existissem mais sons. Talvez fosse melhor só deitar, cobrir a cabeça, e tentar dormir… certo?