001 - O que resta sempre são quadros — Rota 29

e a pataquada toda serviu para algo, pelo menos extinguiu qualquer suspeita acima de Maribelle. Era a oportunidade perfeita para encurrala-los, mas não ocorreu. É um sentimento ambíguo, de certo. Aipom previra muito mais cenários do que realmente se apresentaram, mas ter errado nesse caso foi uma dádiva. Mesmo um relógio quebrado acerta duas vezes ao dia, diziam os antigos. Antes pecar pelo excesso do que pela inatividade. 

Ele não poderia ter se tornado mais parcial. Herói para lá, herói para cá, a chance de materializar a alcunha enfim surgira. Maribelle o via como esperança, agora é óbvio. Ele não comentou nada sobre a perda dela, nem saberia como. Apenas acenou com a cabeça e lhe presenteou com um joinha, uma promessa de que a ajudaria até o fim. Isso se as vozes do andar de cima não tivessem propagado até ali e um trecho da conversa alterado toda a ordem dos fatores. Bendita hora que citaram o dito cujo, tudo estava indo tão bem.

 — Spinarak?

Hiei coçou o cocoruto, se isolando totalmente do que acontecia esse redor. Algo lá no fundo da cabecinha lhe dizia que ele conhecia esse nome de algum lugar. Ele cochicou o nome repetidas vezes, como um ritual para invocar o significado da palavra.

Matutou.
Matutou.
Matutou.
e...

 — S P I N A R A K!!!

Se houvesse luz, Maribelle logo perceberia o quão assustadoramente rápido Hiei empalideceu. Lábios petrificados, pelos eriçados, olhos abismáticos. No exato instante em que recordou, Kasandoro desvencilhou-se de tudo ao redor e disparou em direção ao alçapão. Os dedos trêmulos se degladiavam no chaveiro, explicitando a pressa em sair daquele local. Seus inimigos provavelmente ouviriam, mas já não havia vez para a razão, era puro temor. Junte Michael Myers, três Hypnos de sombreiro e um boleto surpresa, adicione sal à gosto e deixe ferver. Não dá um terço do horror que se apossou de Hiei. Foi burrice pensar que uma passagem subterrânea inóspita não seria abrigo perfeito para aracnídeos. E mesmo que não tivesse, o alto número de probabilidades bastava para pôr os cabelos em queda. Matemática, sua vadia.

Essa vai para a conta da fobia.

 — Eu... eu preci... preciso... oof, oof, oof. — um após o outro, os ofegares tentavam contrapor os pulmões inoperantes — ME DÁ AR! ME DÁ AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAARRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRR!!! 

É stealth que cês querem? Então toma, ladrão. 

Hiei resgatava a força acumulada de toda sua péssima alimentação até os dias de hoje. Era bruto em tudo que fazia, desde o encaixar das chaves até as pisadas na escada. O modus operandi era um só: SAIR SAIR SAIR.

A lei da atração fez seu papel, instaurando o caos dentro da equipe. Logo que Hiei gritou, Fúria se enfureceu (oi?²) e fez a trilha sonora da cena, uma metralhadora de ruff ruffs. Ela e Batata seguiram o treinador, agindo única e exclusivamente como resposta ao susto que levaram. Planejado ou não, o trio enfim rumava em direção dos inimigos, um confronto a essa altura parecia inevitável.

"Evitar conflitos é o sábio a se fazer", disse Maribelle segundos antes de tudo ir pro caralho. 

Não. Não, não, não, não, não, não, não... — os dentes tremulavam tempestuosos, compondo sem maestro a sinfônia do submundo — não, não, não, não, não... — o suor escorria exagerado, salgando toda a superfície do corpo — não é verdade, não pode ser verdade... — as mãos agarravam o cabelo sem nenhuma delicadeza, como se fossem arrancar dali uma solução — M E   T I R E M   D A Q U I!  

É como se eles soubessem exatamente o seu ponto fraco e fizessem de propósito. Improvável, mas foi assim que Hiei interpretou, destilando toda sua simpatia em seguida.

 — SS-SEU LIXO! Isso é trapaça, sabia?! E você??? Perdeu sua honra no mesmo lugar onde perdeu a peruca? AEROPORTO DE MOSQUITO!

Os insultos vinham como forma de desabafo, de tentar levar a própria atenção para outra coisa, esquecer o Cthullu na sua frente.

Pior que uma aranha, duas aranhas. Pior que duas aranhas, três. Pior que... cê já entendeu. No primeiro dia de jornada, Hiei encarava o pior cenário possível. Aquelas patinhas peçonhentas, os olhinhos que mais pareciam buracos negros de maquete, o rosto macabro que as manchinhas emulavam nas costas. Como pode ser tão magnífico e tão... asqueroso? Hiei caçava desesperadamente uma maneira de fugir dali, mas falhava mais do que as palavras que escorriam penosas de sua boca. Voltar era fora de cogitação, só de imaginar que mais desses pudessem estar o aguardando no túnel já eliminava essa alternativa. Não interessa o quanto ele pensasse em agarrar objetos dali e arremessar no venenoso, ou apostar corrida e investir contra uma janela, afinal se Maribelle conseguira, ele também deveria. Nada. Até queria, mas os músculos não respondiam, seu sistema motor estava em pane. O verde musgo de Spinarak cintilava aos seus olhos, como se o envolvesse, o apriosionasse, um abraço de urso - nesse caso, de aranha.

Choroso e de pernas bambas, ele derramou-se no chão.

 — Foi mal, Maria. É que... — snif — não vou... — snif snif — conseguir ajudar. Tenta fugir enquanto dá, sei lá. Eu fico de isca, tá... — pausas dramáticas costumam enunciar mentiras — tudo bem.

Mas aos desavisados que ainda não se tocaram, essa é uma saga de Aipom, não de Hiei.

Foi em meio aos latidos ensurdecedores de Fúria e de toda a confusão que ele mais uma vez teve de tomar a atitude. As duas espécies que surgiram eram comuns em sua área de origem, o que até serviu para amenizar seu receio. Nada como uma boa streak de duas vitórias para elevar a confiança a outro patamar - ou um e meio, se considerar o empate com Snubbull. Hiei mal sentiu quando Batata abriu o zíper da mochila em suas costas e retirou de lá sua capa de chuva clássica, grossa, velha e toda manchada. Enquanto seu treinador se afogava em lágrimas, ele amarrou as mangas em sua nuca, o vendando com aquele amontoado exagerado de tecido. Foi ao finalizar o último nó de maneira brusca que ele conseguira transmitir sua ideia para Hiei, quase que por osmose. Os olhos liquefeitos do menino se abriam, mas davam de frente com uma parede amarela, soberana. O som também era parcialmente abafado, mas o suficiente para deixa-lo imerso em um planeta à parte.

O que os olhos não vêem, o coração resiste ao impulso de dar um bicudo e sair correndo.
O ditado original era assim, mas perdeu o sentido no boca a boca.

Hiei não teve resposta, na verdade, nem sabia o que estava acontecendo. Ele estava ali, mergulhado em um cásulo enquanto todo o caos acontecia na casa. A imagem de Spinarak ainda estava printada na sua cabeça, mas aos poucos começava a se deformar, como se viajasse em outro plano e estivesse cada vez mais longe do aracnídeo. Do lado de fora, é nomeado um novo capitão. Batata ordenou que Fúria colasse no corpo de Hiei e o protegesse caso alguém se aproximasse, essa luta era só dele. A cadela cessou os latidos, reagindo a forte aura de liderança do macaco e reproduzindo o ordenado em seguida. Batata caminhou lentamente até ficar lado a lado com Staryu, a estrelinha de Maribelle. Ele agiu por conta própria e atacou Spinarak, dando início ao confronto.

AIIIPAAAMMMMM!¹

Foi Batata quem recrutou Fúria.
Foi Batata quem escolheu entrar no covil.
Foi Batata quem verdadeiramente se preocupou com Maribelle.
Aipom é o herói dessa história!

¹ Aipom = Scratch 2x no Spinarak

inda vendado, Kasandoro podia ouvir cada efeito sonoro no campo de batalha: os passos, o disparo de água, a porradaria cantando desenfreada. Mas mais do que isso, ele ouvia também a maneira como o comportamento de Maribelle rapidamente foi da água pro vinho, de parecer conivente com a sua desistência para alguém que os enfrentava de peito aberto junto com Batata. Por que só ele não é capaz? Por que só ele tem de congelar nos momentos mais importantes? Tudo isso foi pesando sua consciência, que jazia instável desde antes de entrarem no alçapão. 

Essa é a parte clichê com flashback pra reduzir os custos da animação.

De súbito, a memória de há pouco, quando Aipom quase lhe arrancou a carne do rosto no tapa, reviveu em seus pensamentos como uma dinâmite. Em looping, a sensação da bochecha ardendo voltava tão vívida que parecia estar acontecendo de novo. E de novo, e outra vez, e assim por diante, um dedo eterno no rebobinar. Ainda mais real do que a agressão em si, ele revivia também a faísca que percorreu seu corpo naquele momento, aquela injeção de motivação deletando todas as dúvidas. Se deu uma certo uma vez, por que não duas? O raio só não acerta duas vezes no mesmo lugar porque nunca tentou. 

 — Batata... Maria... Fúria... estrelinha esquisita...

Que se fodam os coachs, é simplesmente entender que tá de boa, Spinaraks são criaturas do cão mesmo. Ainda assim, não é motivo pra parar. E foi a partir desse sentimento em combustão que Hiei lutou contra a fraqueza nas pernas, brigando para se reerguer. A venda improvisada já estava encharcada, mas ele se recusava a tira-la. Pelo contrário, apertou o nó e ajeitou a capa na cabeça com bastante impeto, como um guerreiro que saca sua espada ante a guerra. A solução proposta por Aipom tinha sentido: se o problema estava em ver Spinarak, que lutemos às cegas!

  — Desculpem a demora. Tô de volta!

Embora pudesse soar que ele só estava querendo roubar o protagonismo para si de novo, Batata sorriu, contente em ver seu parceiro novamente de pé. A dupla voltava a lutar junto, e difícil seria separa-los outra vez.

 — Não pare, Batata. Arranhão¹! Derrube a aranha, não importa o que custe! — bradou, resgatando energia de onde parecia que só havia eco. — Ah, e Maria... — agora em tom mais baixo e discreto — só me avisa quando essa praga sair do campo de visão, essa coisa tá apertando minhas orelhas. — e aproveitando o ensejo, um ultimato que resgata bem o estilo abusado de ser de Hiei — E vocês, seus vermes, vou contar até três e quero o pokemon da Maria Bela na mão dela! Um... um e vinte e cinco... um e meio...

Toda a cena de renascimento seria até legal, se não estivesse desde o início virado para parede. Cegueta de primeira viagem é foda.

¹ Aipom = Scratch 2x no Spinarak. Caso desmaie, Scratch restante no Hoothoot.

Foi mesmo? Cê tem certeza? Vou esperar mais um pouco só para garantir, sabe como é... — foi quando Fúria saltou e abocanhou o nó, o desatando. Em slow motion a capa ia de encontro ao solo, revelando os olhos marejados e a expressão assustada do garoto. Em primeira instância se norteou, virando o corpo para onde o real cenário da batalha se desenrolava, quando enfim notou a ausência do aracnídeo. Inspirou fundo, exprimindo em seguida o ar carregado de alívio. Ainda com o nariz fungando e o rosto molhado, nasceu uma risada entrecortada, que tinha o óbvio significado: havia percebido o quão pastelona sua cena tinha sido. Ria e ria, imaginando a reação de Maribelle e de seus oponentes frente ao medo patético que demonstrara. Não tinha vergonha na equação, era só uma maneira de extravazar os sentimentos, de equilibrar a balança. E vamos de mais gargalhada.

Depois da tempestade, vem a bonança. 

Foi como se tivesse viajado no tempo. O último print era assustador, com ambos pokemons adversários parecendo verdadeiros colossos, ameaças intransponíveis. Agora, um tapete vermelho se estendia para que ele comemorasse a vitória com toda a vantagem construída no combate. Ele encarava as costas de Batata, orgulhoso do que ele fizera sozinho pela equipe, escolhê-lo em Mahogany não foi um erro. A medalha de condecoração já tem dono.

 — Vamo por um fim nisso de uma vez? — questionara Maribelle, sugerindo um ataque final combinado. — A R R A N H Ã O!


Era visível que a pobre coruja não seria páreo para a dupla, mas passada a luta, ainda teriam muito a resolver. Hiei sacou o Rotom Phone e começou a procurar por alguma maneira de contactar as autoridades. Discaria pelo número clássico da polícia, se ali houvesse sinal.

 — Só tem um problema, Maria. Dá pra cê falar com eles por mim e explicar tudo? Da última vez que liguei logo acharam que era trote e desligaram na minha cara! Era trote mesmo, mas eu nem tive chance de falar! — e com isso, passara o aparelho para sua companheira, focando na tarefa de contenção. — Fúria, cerque-os pelo outro lado! Tem o aval para arrancar a perna caso eles se movam... — e percebendo a morbidez, amenizou — ou só uma mordidinha pra eles ficarem espertos mesmo, hi hi hi.

Dá pra encaixar um gancho para depois dessa rota eu colar em Goldenrod? Quero ir pro evento, mas faria 0 sentido com o momento atual do personagem simplesmente pegar um trem pra lá, já que ele só tá meio que andando sem rumo. Obrigadooo

diante dos poderes investidos a Hiei, não restava muito o que fazer, apenas aguardar que as autoridades competentes se encarregassem do resto. Ele já podia ver estampado nos jornais: "Máfia DESTRONADA! Conheça o garoto de 12 que desmantelou organização criminosa nos arredores de Mahogany...". Ele reconhecia o mérito talvez até maior de Maribelle, mas não admitiria tão fácil. Talvez por teimosia. Talvez por orgulho. Talvez porque... ela também era uma vítima acima de tudo? Bem lembrado, ainda há pingos a serem colocados nos is.

 — É lógico que vamos investigar! Ainda não recuperamos seu pokemon, lembra? É pra isso que viemos. — ah claro, não foi porque seguir um veículo fora da estrada parecia divertido — Uhum, uhum. Vem logo! 

Com os traficantes aparentemente incapacitados, ele confiou a vigia somente a Fúria e subiu o alçapão com Batata. Não havia pensado bem no que poderia encontrar de bizarro em um ambiente como aquele, mas focava na busca por mochilas, gavetas, qualquer espacinho onde se possa armazenar pokebolas, imaginando que as criaturas não estivessem engaioladas ou coisa pior. Foi também nesse meio tempo que uma gota de suor escorreu para a boca e o salgar dela o contorceu todo para lembrar do elefante na sala.

 — Talvez cê tenha razão. Preciso mesmo de um banho, hi hi hi.