O mundo é construído por histórias.
Existem aqueles que, movidos pela ânsia de fama e glória, são dispostos a criar os mais fantasiosos contos, na esperança de que estes prossigam firmes ao longo e impassível desgaste do tempo. Criaturas gananciosas capazes de, com um mero vislumbre de chances de sucesso, se agarrar até às oportunidades mais imorais que rastejam na viscosidade da podridão humana. Estes casos, não surpreendente, por vezes tentam moldar a realidade à bel prazer, mesmo que seja necessário passar por cima de pobres inocentes no processo.
Em vãs tentativas de se blindar aos constantes ataques avarentos, suas vítimas clamavam piedade às estrelas - agentes celestiais que, em seu longínquo plano de existência, enchiam seus puros corações com lamentos distantes, destroçando-os no aperto vil das garras rancorosas daqueles que, abandonados ao sofrimento injusto causado por conta das mentiras mesquinhas, padeciam assolados por uma reputação que, verdadeiramente, não os pertencia.
Então, houve a intervenção divina.
Seu início ocorreu com a sutileza necessária para passar despercebido: Dentre as tantas narrativas que berravam vantagem aos quatro ventos, surgiram aquelas onde balbuciavam arrependimentos os tolos que de tudo tentavam tirar proveito. Nada que atraísse de verdade os olhares da humanidade, menos ainda que preocupasse os que há muito se acostumaram aos holofotes.
Até que, num rompante, tudo explodiu.
Os algozes de outrora testemunharam a própria queda num oceano raivoso de punições de grande variedade, que iam desde pertences perdidos para sempre até a inutilização de seus corpos, nos mais drásticos casos - ou mesmo de seus entes queridos. Pânico e terror se espalharam em assombrosa velocidade por todo o planeta, o medo da perda se esgueirando por cada viela; E, então, a consequente falta de coragem que passou a nascer em respeito à vontade de subir na vida, afinal, o que poderia ou não ser considerado passível de condenação?
Não se sabia.
Por anos, o progresso se viu estancado. Os Anjos, responsáveis pelas catástrofes que se espalharam por todo o globo, de repente se viram encurralados: Temidos mesmo por aqueles que tanto rogavam seu auxílio, inúmeras famílias aterrorizadas até para sair de casa, a iminência do fim de um mundo que antes tanto lutava para sobreviver.
Outra vez, e desta por culpa própria, os celestiais tiveram de interferir em prol do destino da humanidade.
Em velocidade bem menos alarmante do que quando todo o caos começou - afinal, o terror sempre atravessa fronteiras mais rápido que a segurança -, casos reais passaram a ser considerados fábulas por aqueles que inicialmente os espalharam. Relatos com pessoas, em grande parte, foram modificados: Em sua nova versão, agora protagonizados por animais. Os que não seguiam essa regra facilmente entravam para mitologia, quando houveram afirmações repetidas de que tentaram repeti-lo e nada daquelas “bobagens” aconteceram.
Enfim, a veracidade das histórias se defasou no tempo. Por outro lado, as lições de moral que tantas traziam à tona passou a se assentar no senso comum das pessoas e, então, o âmago do problema inicial foi solucionado ao que o número exorbitante de mentiras finalmente retrocedeu, pelo menos na maior parte dos casos, e consequentemente as punições que as sucediam.
O que não significava que estas também deixavam de existir.
~x~
Quando abriu os olhos pela primeira vez, não foi capaz de dizer onde estava.
Sentia as costas duras, os membros dormentes e o pescoço dolorido - por conta disso, o tempo que levou para levantar foi quase idêntico ao que os orbes cinzentos precisaram para tentar se situar. Sem nenhuma outra reação por longos segundos, ou talvez minutos, quem sabe, a visão tentou se adaptar e compreender a presença dos imponentes troncos enegrecidos de árvores espalhados pelo local, cujas copas cerradas criavam um fantasmagórico céu verde-escuro decorado com veias amarronzadas.
As pálpebras se apertaram, devagar, em busca de compreensão - ou mesmo fuga - daquele cenário estranho, e só então se deu conta da presença também de um zumbido inquietante dominando sua audição. Aos poucos, com a adaptação da consciência outra vez e a percepção do próprio corpo no espaço, jogado na relva, nasceu também o incômodo quando apercebeu-se das gramíneas espetando-lhe os locais em que a pele jazia descoberta.
Com um gemido dolorido, tratou da busca pela recuperação dos movimentos outra vez - um remexer dos dedos, uma esticada dos pés e, após pouco tempo, a coluna finalmente cedeu em se erguer. Os pulmões se encheram de ar, sem pressa, e esvaziaram no mesmo ritmo; o cheiro do orvalho limpo atuando como droga em seu sistema.
A cabeça pendeu para a frente com morosidade, e pôde sentir os longos cabelos balançando no processo. Distante, e ao mesmo tempo próximo, o farfalhar das folhas lutava para manter sua prisioneira no infeliz estado hipnótico, e o zumbido quase pareceu distante por um momento. O desejo de permitir-se tombar novamente no gramado urgiu na alma, a letargia brincando com cada célula de seu ser confirmando-lhe ser uma boa opção.
Então, no meio disso tudo, um uivo longe, quase sofrido, ribombou na sua cabeça - e todos os outros sons se silenciaram, ínfimos, sem valor.
As pálpebras, fazendo jus à sonolência, lentamente subiram. As pupilas, incertas, passearam pela paisagem nublada, em busca da origem do lamúrio responsável por cercear-lhe os planos de se entregar à inconsciência. A visão, quase comparada ao mundo observado por um fundo de garrafa, a nauseava com facilidade impressionante; Os olhos se apertaram num universo escurecido e, com a repetição do som agudo, arriscaram se abrir outra vez. Não sabia se estava em juízo perfeito, ou se a insistência do barulho se tratava de uma alucinação que servia de aviso que deveria sair dali, afinal, a vista turva era um empecilho em busca de quem quer que fosse o responsável por produzir tal aulido.
Na terceira vez, porém, foi capaz.
À distância, quase imperceptível por miudeza, finalmente pôde discernir a sombra densa e quadrúpede que insistia em chamar atenção para si. Foi só ao identificar o topete de topo carmim, no entanto, que ligou a imagem à alguém que já há tempos a acompanhava - Zorua. Mas, por que tão distante?, foi a primeira coisa que se perguntou.
Com os membros ainda trêmulos, o corpo lutou para levantar. Sentiu-se cambalear algumas vezes, e temeu tombar outra vez: Com a reação, entretanto, percebeu a maneira como as orelhas do canino distante se ergueram mais - e, num último latido, voltou-se ao lado oposto e seguiu entre as árvores.
Foi o combustível que precisava. Temendo a perda da mascote - afinal, o que ela queria com aquela atitude? -, endireitou a postura tanto quanto possível, e apressou-se em seguir o caminho conduzido pela quadrúpede. Felizmente, não a perdeu de vista, mas questionava-se que tipo de trilha invisível ela parecia tão determinada a ir atrás. Por vários momentos, imaginou que existia alguém à frente que, sinceramente, não enxergava.
Talvez ela estivesse apenas brincando.
Talvez fosse guiada pelo cheiro de algo, ou alguma criatura.
Talvez…
A cada passo que avançava, o silvo do vento afagava ríspido as folhagens das copas, protestando contra a teimosia da moça de não ceder aos caprichos de Morpheus. A presença escura e imponente da floresta era sufocante, apesar, e ela sentia o peito apertado enquanto os segundos corriam sem pressa.
Também não seria capaz de afirmar com certeza quanto tempo demorou naquela caminhada atrás de Zorua. Se parasse para pensar, talvez achasse estranho o fato de que, durante todo o trajeto, não havia se deparado - ou sequer ouvido - nenhum outro pokémon. Como podia uma área tão verdejante ser tão morta, senão pior, que um deserto?
Digamos que, da última vez que estivera em um lugar assim, nada acabou bem.
E nada acabou - o Limbo ainda mantinha as raízes de suas perversidades fincadas fundo em seu coração. A prova viva disso era um dos pokémons que ainda insistia em carregar, sua mais profunda cicatriz: Nosepass.
Talvez, no fundo, realmente acreditasse no que o homem que habitava aquele solitário lugar dissera-lhe: Aquele pecado era sua responsabilidade.
Talvez nem bem soubesse o porquê.
Enfim, depois de um período que talvez só Arceus fosse capaz de informar com exatidão, a jovem se deu conta que a floresta começou a se abrir à frente. Zorua estacou no limiar das árvores, e latiu mais duas vezes para a frente; Voltou o focinho para trás por um momento para checar se estava realmente sendo seguida e, então, continuou seu caminho.
A ruiva logo descobriu onde aquela “abertura” desembocava: Um lago de águas escuras, com todo o seu esplendor, se estendia até onde a visão não alcançava. Também foi capaz de localizar o que tanto a raposa parecia perseguir: Nosepass, em sua marcha lenta e pesada, caminhava pelo lago em direção ao fundo em uma linha reta.
Já poderia ser estranho o suficiente sem que ele estivesse andando
sobre as águas.
Zorua, incerta, tateou a superfície do lago com uma das patas.
Por alguns momentos, a jovem perdeu sua capacidade de reação - tanto pela cena improvável, quanto por ter de encarar aquele animal que só fazia questão de dar-lhe problemas a cada vez que se encontravam. Não tinha certeza de qual seria o circo da vez, mas não tinha tanta vontade de descobrir.
Era exaustivo e, sinceramente, às vezes se perguntava se precisava aguentar esse tipo de coisa.
Desejou, secretamente, que o animal rochoso pudesse simplesmente desaparecer. Que ela pudesse sair dali e fingir que nada tinha acontecido, que tivesse a oportunidade de largá-lo para trás e arrancar aquela lembrança dolorosa de uma vez por todas de sua vida.
Do fundo do coração, desejou.
Mais um latido atrapalhou sua linha de pensamento - e a garota correu o olhar em busca da quadrúpede bicolor. Qual não foi sua surpresa, então, quando viu que a margem estava vazia e, ao desviar a atenção para o lago novamente, pôde vê-la
também sobre as águas, perseguindo o nariz-de-bússola?
Não, não. Talvez o mais ideal seja questionar a respeito do choque quando, ao finalmente alcançá-lo e ambos pararem no lugar (talvez discutindo, quem sabe?), os pokémons foram abruptamente tragados para baixo do lago, desaparecendo no azul profundo e as únicas provas de sua presença se resumiram nas pequenas ondas da superfície.
Tudo o que aconteceu, então, foi muito rápido. A ruiva correu para dentro das águas - então, ao perceber que os pés afundaram, jogou as coisas na margem de qualquer jeito e mergulhou. Lá dentro, nadou até cansar - buscando no lago inexplicavelmente vazio, voltando para cima apenas para tomar ar e gritar pelos pokémons.
Não percebeu o tempo, tampouco a neblina que se espalhou, vagarosamente, por toda a área do lago enquanto insistia na sua busca quase desesperada. Nem mesmo a queda gradual de temperatura, ou a maneira que os silvos do vento arranhavam a atmosfera, cada vez mais frequentes. Ficou ali até que os dedos ficassem pálidos e enrugados, que o fôlego começasse a faltar mesmo para se mover, que os músculos lamentassem a cada tentativa de movimento - e só então, derrotada, praticamente se arrastando até a margem, abandonou as águas.
O tronco tombou contra as gramíneas, e uma crise curta de tosses não auxiliou a melhorar a situação. Os dedos, trêmulos, se pressionaram contra o solo, cavando pequenos cilindros ao arrastá-los pela terra.
Do fundo do coração, se amaldiçoou.
E então, um riso cristalino ecoado preencheu o ar.
Por um momento, foi como se tudo tivesse parado - se é que as horas realmente passavam naquele lugar. Os pulmões pararam de funcionar por um rápido segundo, e a respiração de repente quase se regularizou. Receou checar se estava louca ou não - não quis, de imediato, verificar se existia vida ali além dela própria, e seus pokémons agora perdidos.
A consciência do vazio do lugar, de repente, a atingiu com uma pancada certeira; por isso, temeu.
Mas não era o temor que espantava os fantasmas.
— Que estado deplorável em um lugar tão bonito, você não acha? - Novamente, o riso calmo.
Sem saída, olhou.
De primeiro momento, parecia que realmente era só alguém que, por algum acaso, tinha chegado em uma péssima hora - por mais estranhas que pudessem ser suas atitudes. Até um segundo olhar, pelo menos, onde pôde por fim identificar a figura a qual lhe dirigia a palavra.
Fora da água, apenas a altura de seu torso estava exposta. Os dedos das mãos brincavam com o líquido, arrastando-o de um lado à outro, e olhos verdes vivos clamavam em fortes urros por atenção, e facilmente eram atendidos por qualquer um que se deparasse com sua figura. Assim também aconteciam com os cabelos, ou ao menos o que deveriam sê-los; Algas esverdeadas recaíam por seus ombros, plantadas do topo da cabeça. Uma camisa, extremamente parecida com uma rede de pesca, adornada com conchas e pequenas estrelas, era tudo que cobria seu tronco.
A mulher sorriu.
— Tudo isso por culpa de dois bichinhos? - Questionou, a voz irritantemente serena.
— Normalmente, as pessoas rogam um pouco mais antes de ficar com essa expressão derrotada.Julgando que uma resposta atrevida poderia custar um pouco mais que o sumiço temporário dos seus pokémons, ruiva engoliu as palavras dentro da boca, e limitou-se em voltar o corpo na direção da estranha criatura. Ora, o lugar estava vazio o suficiente para que pudesse contestar o fato dela comentar o que os outros fazem ou deixam de fazer! Mas, em contrapartida, sabia que não a tinha visto até então: E, considerando a situação, o que lhe garantia que a mulher não desaparecera ela mesma com os animais?
— ...E você os viu? - A expressão fechou, impassível, embora os olhos ainda denunciassem não só o próprio desconforto, como o receio.
— Certamente. - O sorriso branco cresceu no rosto, como uma tela estampada.
— Veja só.Com uma pausa rápida do movimento dos dedos, a donzela fitou as águas escuras, que borbulharam inquietas. Dali poucos segundos, uma circunferência aquosa flutuou para cima da superfície, arrastando de seu manto azulado a figura de uma pequena raposa marrom adormecida.
— Não é esta a quem procura? - Prosseguiu, serena.
— É uma bela espécie, devo dizer.Os lábios de Natalie se torceram, mansos. Poderia, facilmente, concordar: Afinal, pagaria para ver se a diferença nos pelos não pudesse ser, quem sabe, lama (mesmo que fosse uma opção estranha, acabando de sair das águas). O grande problema era que suas vistosas pelagens vermelhas agora facilmente se confundiam com a tonalidade das águas, ou mesmo poderiam ser suprimidas por esta, visto sua clareza azul.
A jovem balançou a cabeça, negativamente.
— Não, Zorua não é assim. Mas eu creio que você sabe, se assistiu tudo, não? - Retrucou, inquieta. Aquilo era algum tipo de pegadinha cínica? Ugh.
Com a resposta, observou a desconhecida perder o sorriso que, até então, decorava seus lábios finos. Ela encarou a ruiva na margem por um intervalo de longos segundos, e estreitou o olhar.
— ...Entendo. Oh, uma tragédia, certo? - Forçou um sorriso.
— Vejamos este, então. É o seu?Do mesmo modo que a quadrúpede, um pequeno pokémon rochoso foi regurgitado do lago. Seus tons azulados, com o enorme nariz vermelho no meio do rosto, infelizmente eram conhecidos o suficiente pela moça para que passasse despercebido ou que pudesse rejeitá-lo sem pensar em todo o peso que aquilo pudesse significar.
Pensou em fazê-lo, é verdade.
Mas também pensou que, bem, toda aquela desgraça começou com esse desejo.
Teve vontade de rir. Não era maravilhoso como mesmo naquele tipo de situação, era justo
ele quem não se perdia nas águas?
Talvez fosse sua sina.
Maldito pokémon.
— ...Infelizmente. - A ruiva sorriu, sem humor algum.
— Mas, sim, é. De novo, você já sabe a resposta, não sabe? Não entendo que tipo de jogo sádico quer fazer aqui.Então, de perto, assistiu toda aquela expressão serena da figura se quebrar. O jeito como seu cenho se franziu, os lábios torceram e, acredite, uma rachadura negra trincou-lhe o rosto. Os pokémons aprisionados dentro das bolhas foram derrubados na margem do lago, e ela avançou para agarrar o rosto da treinadora com os dedos longos e ossudos.
Um sorriso afiado brincou em seu rosto contornado por algas, que se aproximou perigosamente do alheio.
— ...Entendo. - Repetiu, devagar, arranhado.
— É uma pena. - A boca entreaberta chegou mais perto de um dos ouvidos da moça, a respiração lenta. A figura apertou as unhas pontudas no rosto da ruiva, e um filete fino de sangue deslizou.
— Você não vai poder ficar conosco, então. - Sussurrou.
— É uma pena, - Repetiu.
— todos os outros adoram o fundo do lago.Então, tão rápida quanto chegou, ela se foi. Largou a mão fina do rosto alheio, desaparecendo nas profundezas azuis e abandonando os dois pokémons ao lado da adolescente consternada.
…
…
…
O mundo é construído por histórias.
A grande diferença entre elas, jovem ouvinte, é quando você tem a sorte de ouvi-las ou, mais ainda, contá-las.
Reze para nunca fazer, para sempre, parte de uma.