(002) - Clean

Finalmente era possível ver a mariposa mostrar sinais de cansaço. Não via a hora de derrotá-la também, o êxtase da derrota do mangusto misturado em minha raiva pelos dois me deixava com uma sensação incrível. Esse sentimento sombrio não era algo com que estava acostumada, mas certamente gostaria de senti-lo novamente.

Agora mais próxima do Zangoose nocauteado, dei mais alguns passos e parei ao lado direito dele. Meu olhar de desprezo era já característico, durante toda a luta minha feição alternava entre essa e a de puro ódio. Olhei de relance para a cabana; além do fim da luta, não aguentava mais segurar a vontade de correr para lá e checar os possíveis sobreviventes.

Olhei para Abra novamente, o psíquico parecia cansado, mais do que já esteve na luta anterior contra os meninos mimados. Minha preocupação para com ele também era grande, mas meu julgamento estava nublado pelas nuvens da raiva e do rancor. Quando tudo acabasse, eu cuidaria do mesmo.

— Vamos acabar logo com isso, Sushi. Use Round mais uma vez. — voltei meu olhar para Dustox, aguardando seu próximo movimento.

O Pokémon me obedeceu, dando tudo de si na formação dos anéis sonoros, que poderiam ser os últimos. As asas da mariposa já pareciam bater um pouco mais lentamente, assim como as escamas de suas asas já estavam danificadas pela sucessão de ataques. Sushi terminava de formar os círculos tricolores e os enviava na direção do adversário.

Respirei fundo, talvez pela primeira vez em muitos minutos. Agora eu já tinha plena consciência de que não estava em meu estado normal, mas como dito anteriormente, pouco me importava. O encanto que eu sentia em ver que aqueles Pokémon, ruins e causadores do incêndio, perecendo em minha frente era indescritível. Me virei por um segundo e ordenei uma última vez para Sushi:

— Use  Round novamente, vamos mostrar que o que fizeram não vai ficar barato. — desviei o olhar de novo para Zangoose — Não é?

Após minhas palavras dei um sorriso irônico, cerrando parte dos olhos e ambos meus punhos ensanguentados. Agachei devagar com o olhar fixo na feição do Pokémon nocauteado. Enquanto o fazia, coloquei o punho direito poucos centímetros acima do rosto dele, apertando a mesma mão com bastante força, o que fez com que o sangue saísse das aberturas machucadas do dorso até escorrerem em cima da testa do adversário. Minha feição agora se transformara, o sorriso irônico e sombrio parecia já não sair do meu rosto.

— Sei o que vou fazer com você. — falei entre os dentes, apertando o maxilar logo em seguida — E pode ter certeza que terei todo o prazer do mundo em fazê-lo.

Nem acredito que a batalha acabou. A sensação de alívio e de satisfação era grande, o que fazia com que meu sentimento de ódio e raiva diminuíssem um pouco, mas não o suficiente. A mariposa caía do outro lado completamente exausta, sem energia para fazer mais nada. Era ótimo.

Olhei para o Zangoose por uma última vez, o Pokémon agora tinha marcas vermelhas de sangue em sua testa que levemente se mesclavam em meio ao seu pelo branco e rubro. Era grande a felicidade de derrotá-los e não pude conter o sorriso macabro de meu rosto. Minha vontade de verdade era de dar um fim naqueles Pokémon, de destruí-los com as minhas próprias mãos até sobrarem apenas pedaços que mal recontassem sua existência. Não foi a primeira vez que tive contato com Pokémon puramente malignos, mas dessa vez eu não os deixaria escapar.

— Sabe, eu poderia pensar em mil castigos para Pokémon como vocês. Eu poderia matá-los agora mesmo, asfixiar até a morte e arrancar ambas as asas da mariposa com um alicate. — coloquei a mão esquerda dentro da minha bolsa, ainda agachada — Não que eu não queira, mas… Não existe castigo pior que a privação da liberdade.

Dito isso, busquei uma Pokéball vazia e a empunhei, olhando fixamente para Zangoose. Em seguida bati com o círculo central da esfera metálica na testa do mangusto, levantando e dando as costas imediatamente para o Pokémon. Não me importava se eu o capturaria ou não, só o castigo de ter que fazê-lo lutar por sua liberdade era o suficiente. — Vamos ver se você gosta da sensação de aprisionamento. — pensei já caminhando para frente e ignorando a existência de ambos selvagens.

Sushi se teleportou para o meu lado, mas não pude deixar de notar que o psíquico estava incomodado com as minhas ações. O Pokémon estava há alguns centímetros de mim e evitava qualquer contato no olhar, interagindo minimamente. Talvez ele sinta que ainda tem alguma força maligna dentro de mim ou talvez ele tenha percebido que a Karinna com ódio é completamente diferente da treinadora que ele conhece. Olhei para Tábata por um momento.

— Faça o que quiser com a mariposa. Estou cansada de olhar para a cara deles já. — joguei meu cabelo para trás, aproveitando um pouco da brisa e apertando o passo.

Comecei a correr na direção da cabana, era possível ver que parte da estrutura já estava para se romper e cair; quem quer que seja que esteja dentro da cabana, se estiver vivo, ainda haveria chance de salvar. Quando cheguei, desviei rapidamente de alguns pedaços de madeira no chão, tomando cuidado para não pisar em falso, o risco ali era iminente não só pra eles quanto para nós também.

Ao chegar em um cômodo, pude ver claramente: era um lindo Ralts e uma ninfa de algum inseto desconhecido. Ambos os Pokémon estavam abraçados, acredito que para se proteger do que estava acontecendo; o Pokémon psíquico parecia tentar carregar o inseto. Meu coração de repente se encheu de amor, como que pode dois seres completamente diferentes se ajudarem em um momento como esse? Que bom que fiz os dois que iniciaram o incêndio pagarem pelo que fizeram.

— Tábata, corre aqui. — meus olhos encheram d’água — Tenho uma ideia. Eles não parecem ter força para resistir, vamos capturá-los e sair daqui o mais rápido possível para podermos cuidar deles fora desse ambiente instável.

Agachei mais uma vez, dando um sorriso honesto pela primeira vez em muito tempo. Sushi observava Ralts como se ambos se comunicassem de uma forma que eu desconhecia ou não pudesse escutar. Olhei para Nincada e Ralts com toda ternura adormecida em mim.

— Podem confiar em todos nós. — disse já segurando uma Pokéball dentro da bolsa e logo mostrando para eles — Vamos cuidar de vocês.

Abra olhou para mim e fez um sinal positivo com a cabeça. Não fazia ideia do que o mesmo tinha falado com Ralts, mas acredito que o psíquico estava de acordo com minha ideia. Logo, lancei a Pokéball na direção do pequeno psíquico selvagem, aguardando apreensivamente para ver o que acontecia.

Em meio ao calor abafado que fazia dentro da casa e mesmo com partes das vigas caindo aos poucos perto de nós, a emoção tomava conta de mim. Eu tinha conseguido salvar ambos os Pokémon, com um ficando pra mim e outro para Tábata. No final das contas, todo meu surto valera a pena: os dois causadores do incêndio foram punidos e ninguém saiu ferido. Guardei a Pokébola contendo Ralts e ao escutar um barulho estrondoso, me virei para olhar.

Era hora de me preocupar comigo e com Tábata. Partes da cabana começavam a cair devido a frágil estrutura causada pelo fogo, nossa entrada agora era bloqueada por uma grande viga e não haviam outras saídas em nosso campo de visão. Tábata me olhava um pouco estranha, a garota não parecia muito feliz com o que eu havia feito anteriormente, mas pouco me importava, eu só queria sair dali.

Comecei a correr pela cabana; parece que o desespero tornava a pequena cabana, gigante. Fiz sinal com a mão para que Tábata me acompanhasse, enquanto apertava os passos no corredor em direção à cozinha. Pensei em usar o Teleport de Abra para sairmos daquela situação, mas não podia arriscar que o teleporte nos levasse até uma viga que estivesse caindo, causando nossa morte iminente.

— O que faremos? — tapei minha boca com as mangas do meu bolero, não podia arriscar respirar todo aquele monóxido de carbono  — Podemos tentar quebrar essas janelas, mas essas partes metálicas serão um problema.

Dito isso, tirei meus sapatos e comecei a bater com toda força nas janelas da cozinha. Minhas mãos, machucadas, agora começavam a arder mais, talvez pelos  medicamentos de Tábata estarem fazendo efeito. Abra parecia continuar aborrecido com algo, aquela expressão séria que o mesmo carregava antes de encontrarmos a cabana em chamas voltara: o psíquico olhava fixamente para fora das janelas, como se estivesse encarando algo ou alguém.

Meus esforços ali pareciam ser em vão. Saí pela porta da cozinha, passando novamente pela sala que parecia ainda mais destruída, as vigas agora impediam parte do nosso caminho e o desespero parecia tomar conta do meu ser. Fechei os olhos brevemente, tentando me acalmar o mais rápido possível. Mais ao lado direito da sala, haviam dois cômodos não identificados; segui em frente, ignorando o primeiro deles e já abrindo a porta ao que parecia uma descida para um porão escuro.

— Parece que tem uma entrada por ali, Tábata! — apontei na direção do que parecia uma escada para um porão — Talvez a fumaça ainda não tenha decido completamente, mas se não tiver uma saída por lá estamos ferradas, vai desabar tudo em nossas cabeças.

Parei de bater nas janelas da cozinha já me movimentando para descer para o porão, era nossa última esperança visto que não possuíamos força suficiente para derrubar as janelas dos cômodos. Por sorte, quem sabe encontremos algo raro ou diferente por lá que pudesse nos ajudar ou até mesmo uma saída direta para a floresta.

A cabana parecia estar nas últimas, algumas frágeis vigas continuavam caindo devido ao dano causado pelo fogo e a qualquer momento o teto poderia ceder. Talvez embaixo estívessemos protegidas das vigas e da fumaça, mas não poderíamos ficar presas de maneira alguma; sem visão de onde estaria indo, nem mesmo o Teleport de Abra poderia nos socorrer.

— Er… — disse sem graça ao olhar o porão e a chaminé recém-apagada — Talvez não foram Dustox e Zangoose que iniciaram o incêndio no final das contas.

Queria sentir remorso, mas por algum motivo não conseguia. Eu passei dos limites com o mangusto, mas a sensação incrível que eu senti durante todo o processo não deixava uma gota de arrependimento prevalecer na minha mente. Poderia pensar nisso depois, agora o foco era nossa sobrevivência.

O pequeno porão era disposto de diversos elementos que pareciam fora do lugar. Como em jogo de quebra-cabeças macabro, ou ajeitávamos as peças para sairmos de lá ou morreríamos soterradas. A chaminé parecia recém-apagada, alguém que estava ali e causou todo esse incêndio lidaria com a minha ira posteriormente, a pessoa não poderia estar muito longe já que o fogo se alastrou em questão de minutos. Perto da lareira estavam dispostos dois baldes de água, junto com algumas cordas que pareciam já fazer parte do ambiente anteriormente. Na frente da porta, nossa única saída, havia uma segunda bicicleta, essa com um cesto enorme na frente, talvez para carregar alguma mochila pesada ou quem sabe até mesmo um Pokémon.

— Vamos pensar, Tábata. — olhei para a porta que viemos — Temos que ser rápidas ou a fumaça começará a descer também.

Subir já não era uma opção. Barulhos estrondosos de vigas caindo tornavam a situação pior para o nosso psicológico. Eu já não estava normal da cabeça, com isso, então… Era visível que a fumaça já tomara conta de todo andar de cima. Olhei dentro do cesto da bicicleta na esperança de encontrar algo, depois encostei na parede ao lado da porta para observar tudo que tínhamos à nossa disposição.

— Podemos usar as cordas para tentar arrancar a porta. — segurei meu pé direito, apertando e sentindo bolhas que futuramente se formariam devido o calor do piso superior — Primeiro dia de jornada e eu já tô toda fodida, cheia de feridas pelo corpo todo.

Me ajeitei, agora andando em círculos dentro da cabana, pensando em uma solução iminente. Sushi me olhava como quem pedisse para o deixar usar seu ataque psíquico, mas eu não poderia arriscar que ele se teletransportasse pra dentro de um concreto ou no meio de uma árvore. Fiz um carinho breve na testa do mesmo, tentando tranquilizá-lo naquele momento difícil.

Minha primeira ideia foi tentar subir por dentro da chaminé, poderíamos utilizar as cordas para subir, eu e Tábata talvez caberíamos no duto, mas nada me garantiria que a fumaça no meio do caminho não nos asfixiasse. Péssima ideia.

Minha segunda solução era pegar os baldes de água e tentar subir, refrescando as passagens de difícil acesso devido a temperatura, mas as chances de uma madeira cair em cima de mim são enormes. Outra saída descartada.

Olhei fixamente para a porta recém-descoberta do porão. Aquela ali sem dúvidas era nossa única saída, agora tendo certeza disso. Poderíamos tentar arrombá-la, mas minha força e de Tábata combinadas não seria suficiente para isso. Abra não poderia fazer muita coisa além de tentar usar as ondas de som de Round para destruir a porta, o pobre do Sandygast nem ataque tinha para ajudar, a não ser que tentasse matar a porta de susto com Astonish. Dei uma leve risada imaginando a cena, mas o caso era sério: o que faremos?

Lembrei, então, de nossos mais recentes capturados Pokémon: Ralts e Nincada. Poderíamos usar Zangoose e Dustox também, mas as Pokéballs dos mesmos ficaram do lado de fora, na minha saída dramática pós-batalha, não voltei para pegá-la já que tinha urgência de entrar na cabana.

— Vamos tentar arrombar essa porta, Tábata — tirei a bicicleta da frente da porta, dando uma última olhada no cesto para ver se havia alguma coisa — É a única solução, vamos usar todos nossos recursos.

Busquei a Pokéball de Ralts dentro da minha bolsa e já o soltei para que nos ajudasse. O pequenino psíquico parecia ainda amedrontado, mas logo o abracei para que soubesse que estava tudo bem. Com a mão direita procurei minha Pokédex para tentar descobrir quais ataques o Ralts poderia saber a essa altura, mirei no Pokémon mas meu dispositivo parecia estar com defeito, algo estava atrapalhando o sinal.

— Excelente. — reclamei, colocando Ralts no chão e dando uma leve bufada — Ainda bem que conheço diversos ataques psíquicos, vamos tentar até sair algum que você sabe, Ralts.

O Pokémon levantou a cabeça e me olhou afirmando com a cabeça, sendo agora a primeira vez que eu via seus olhinhos cor-de-rosa. — MEU DEUS QUE FOFURA!!! — pensei dando um sorriso enorme mas logo voltando minha atenção para o que estava acontecendo.

— Hm, Ralts, use Psychic na porta! — o Pokémon me olhou de volta, sem entender. — Já vi que esse não sabe… Psybeam! — novamente, ele não compreendia — Psywave… — nada acontecia.

Tentei pensar em diversos, até me lembrar de um único ataque que até mesmo Pokémon sem ser do tipo psíquico aprendia, talvez por não ser algo tão poderoso assim. Cerrei meus punhos machucados, olhando fixamente para a porta e apontando com a mão direita na direção da mesma.

— Já sei, Confusion! — exclamei, vendo agora o pequenino psíquico ser rodeado por uma aura azul brilhante — Agora use para tentar empurrar a porta para fora!

Em segundos, a aura que envolvia Ralts agora também envolvia completamente a porta, o Pokémon parecia se esforçar ao máximo, o que me deixava com o coração acalentado. Olhei para Abra, que estava visivelmente animado para entrar em ação também; ele levitava por todo o ambiente, inquieto e possivelmente com vergonha de pedir para ajudar.

— Sushi, ajude seu amigo, use Round quantas vezes puder na porta. — dei um leve sorriso, observando Abra já abrindo a boca para emitir o som que formava os anéis sonoros, que após formados, seguiam na direção da porta.

Observei tudo aquilo com exímia precisão. Talvez toda aquela movimentação acelerasse o processo de desabamento da cabana, mas era a única coisa que poderíamos fazer. Caso conseguíssemos abrir a porta, teríamos que correr o mais rápido possível para fora, para evitar até mesmo um soterramento que custaria todas nossas vidas.