Era complicado.
Ouvir palavras acusatórias, de indiferença ou meramente de uma mágoa distante que talvez se afogasse no peito da loira - por isso já esperava, independente se pela teoria certa ou errada. Com o olhar ainda se dispondo à analisar a chave que detinha em mãos (mesmo que a atenção estivesse voltada às palavras da outra, por bem ou mal), descobriu que o silêncio era um fator delicado e viciante com o qual já estava mais que acostumada, afinal, mais uma vez permitiu-se mergulhar em seus braços enquanto a possibilidade de uma atmosfera pesada e vazia era suprimida não só pelas sílabas proferidas pela outra, como também por conta de sua atitude em arremessar o próprio colar, objeto que logo captou o foco da moça graças ao seu tilintar ecoado (e meio abafado, para ser sincera) em consequência ao impacto contra o piso.
Mesmo com seu pedido, porém, a ruiva não se moveu, inicialmente. Dispersos, os orbes passearam pelo objeto largado no solo, pelas grades que as prendiam e separavam e, principalmente, pela imagem de Karinna, enquanto a loira se acomodava contra as barras de ferro e encarava as mãos que há pouco espancavam seixos afiados à beira de um lago coberto por nevoeiro. Chegava a ser engraçado - novamente, por tendências masoquistas - refletir sobre a maneira como, mais uma vez, reencontrava um passado distante enquanto a falha de aperceber nele um momento de aconchego se tornava verídica e pontual. Se pensasse pelo menos um pouco à respeito, certamente acharia estranho o fato de terem praticamente se teletransportado num estalar de dedos - entretanto, por bem ou mal, já nem mais lhe era esquisita a ideia de desaparecer de seu plano de existência e surgir em uma área completamente diferente e, bem, de certa forma, essa podia ser um bom efeito colateral entre as tantas desgraças que a abateram ao longo da frustrante jornada que seguia desde Johto, Kanto, e atravessando ambos até finalmente repousar em Hoenn.
Ainda em silêncio, se abaixou, devagar - logo após um riso baixo, sem humor, quando a consciência captou a menção à Katakuri -, e recuperou a chave lançada pela loira, brincando com seu colar entre os dedos e observando-as de perto em busca de alguma diferença mais explícita que pudesse estar encravada nos objetos; Não demorou-se muito no trabalho, porém, antes de se encaminhar ao lado oposto da "parede" onde a moça se escorava, aproveitando uma das barras para apoiar o ombro direito, o olhar percorrendo não só seu rosto, como a profundidade do alheio.
...
— ...Seu olhos. — Foi o que sussurrou, primeiramente, a cabeça se encostando de maneira displicente na barra em que já se apoiava. Em avanços tímidos, as lembranças se arriscavam em adentrar território que há muito desconheciam; Talvez fosse incapaz de medir consequências disso naquele instante mas, oh, quais poderiam existir que a desgraçariam mais do que o próprio destino já não havia feito? — ...Eles ainda refletem o mar. — Pontuou, sem encontrar necessidade de aprofundar-se mais em tal tola afirmação - confiou, simplesmente, que Bley seria capaz de compreendê-las sem que o fizesse.
Não era como se sua memória falhasse ou, pelo menos, acreditava que não. Ainda se recordava de um dos primeiros encontros que tivera com a loira e, dentre os tantos gestos perdidos, as gargalhadas e pose forte que a outra esbanjava em tentativas talvez de sobrevivência e auto-proteção, uma de suas maiores ousadias provavelmente havia sido a penetração cega em sua armadura tão delicadamente construída, com não muito mais que a praia e o oceano de testemunhas - seus olhos, Karinna, eles são como o mar.
"São, porque ninguém discute, por um momento, a imponência dele. Tem quem ame, quem fique com raiva, quem confie e quem tenha medo. Só que, ao mesmo tempo que todo mundo conhece bem a fúria das águas e reconhece a beleza, ninguém para pra pensar em como é fácil só... Entrar nele, você entende?", foi o que dissera um dia. "Quer dizer, se eu me jogar na água aqui e agora, o que ele vai fazer? Talvez uma onda, talvez a correnteza puxe um pouco, mas é só uma margem. Eu posso sair e tudo fica bem!", comentara, com um sorriso talvez infantil e gestos exagerados para o horizonte oculto no oceano. "...Mas, aí, é fácil entrar e sair, sentir a água no tornozelo e fingir que tá tudo bem. É fácil ficar longe do oceano quando a superfície agita, né? Como se ele gritasse pra ficar longe, pra se proteger de alguma coisa besta ou, bem, talvez não tããão besta!"
"..Quando a gente fica aqui, eu não consigo deixar de pensar. Mesmo quando a superfície tá agitada, é normal que o fundo fique... Tranquilo, né? Eu acho. Mas aí, também tem outra coisa: Quando tudo tá calmo, ainda sobra aquelas coisas desconhecidas lá no fundo, beeeeeeeeeeeem no fundo, que a gente nem sempre sabe, mas que pode incomodar ou, sei lá, simplesmente continuar existindo, sabe?", e, nesse momento, as palavras já teriam se perdido. Sabe-se lá quanto tempo teria levado para se tentar fazer entender mas, oh, ainda não era o fim das partes que importavam; Não, ainda não. "...Mas, você sabe qual é o maior problema?"
"O maior problema, eu acho, é quando a superfície parece calma. A gente para pra ver e admirar, às vezes só passa por cima ou pelo lado, deixa pra lá, sei lá, acho que é normal, né?", uma pausa, tão merecida quanto agora também o era. "...Mas aí, se você parar pra testar ou pra prestar mais atenção, talvez dê pra perceber que não é bem assim. Dá pra ver a maneira como as correntes se movem, às vezes, por baixo d'água - quer dizer, eu consigo, quando passo um tempo na praia. Como elas se agitam, como puxam. Quando tudo parece sob controle, de repente, nada mais está e ai BAM! CAOS!", seria um grito perdido para intensificar as próprias palavras, pouco antes de se acalmar outra vez. "...E não tem ninguém que dê um abraço no mar, porque acho que não tem como? Talvez por não perceberem! Não sei bem. Acho que deve ser dureza parecer calmo quando tem um turbilhão lá no fundo, sei lá. Enfim, o que eu quero dizer é que..."
"...Seus olhos são como o mar, Karinna. E eu acho que eles refletem muito; Talvez até mais do que deviam!", teria concluído, com um olhar direto nas profundezas do da outra - provavelmente em uma cena bem parecida do que a da atualidade, para ser sincera. Talvez até com uma atmosfera menos séria, pesada - e como não, huh? "...Só que, ao contrário do mar, acho que você tem como pedir um abraço, quando precisa. E sabe pra quem??? E-u-z-i-n-h-a aqui!", acrescentaria, com um sorriso talvez bobo; Oh, não julgue, já teria sido uma filosofia tão grande para alguém tão nova - não é como se sua conclusão seria alguma descoberta das Américas ou algo do tipo. "E seeeeeeempre vai ter! Mesmo quando pareça que não!", teria afirmado, sabe-se lá se logo após ou muito tempo depois. Qualquer dos jeitos, é difícil reconstituir tão antiga memória; Deixemos assim, por enquanto.
...
E então, no presente, distante de toda uma coletânea de memórias antigas, um sorriso parvo. Se prestasse atenção, talvez ainda seria capaz de sentir o rosto dolorido, proveniente do golpe com o qual a outra lhe havia acertado em primeiro encontro - além de, é claro, a ardência dos joelhos provavelmente cortados, por conta da violência com que arriscara se arremessar no chão para acolhê-la; Qualquer das maneiras, tais fatores pareciam irrelevantes o suficiente para que fossem mencionados em tal ocasião, principalmente pela ignorância da ruiva para com eles.
Quando se destroça o psicológico, de que importa o físico, afinal?
— ...Eu consigo lembrar da última vez. — Murmurou, o olhar se arriscando desviar por um momento para vislumbrar o teto de sua prisão que, por enquanto, ainda não sabia dizer se seria ou não temporária. — Acho. Mais ou menos, quer dizer. Nós tínhamos combinado de procurar conchas no dia seguinte, não é? E apostar quem ia encontrar um, ou mais, Shellder's primeiro. — Divagou, um riso rouco e perdido escapando da garganta - suave, balançou a cabeça e as pálpebras se cerraram, o peito subindo e descendo em ritmo lento, apesar de inquieto. — ...E então, eu fui pra casa. — Um sussurro perdido, acompanhado por pausa desconfortável. — ...Ou ia? — Sussurrou, balançando a cabeça em um bailar atribulado. — Quer dizer, eu não lembro de chegar. — Riu, um riso oco - como os tantos que já estava acostumada. — Não importa quantas vezes eu tenha repassado na cabeça, quantas vezes pense sobre, quanto tente. Tudo é nublado, cinza, como um rascunho borrado que nunca quiseram terminar. — Foi o que disse, com uma respiração profunda. — Tudo o que consigo pensar é em um arrastar de pés e em um disco. — Comentou, displicente, as pálpebras se entreabrindo e os dedos desenhando um formato redondo no ar, sem nenhuma precisão e tampouco firmeza, pequeno o suficiente para se passar por um donut - ou um CD, quem sabe? — E, independente do quanto eu tenha pensado, nunca chegou a fazer sentido. — Sorriu, sem emoção. — Depois, não sei quanto tempo ou por quê, eu lembro de ver o mar. — Acrescentou, esfregando a bochecha com uma das mãos, um suspiro fraco marcando o fim da ação.
— Ainda não tenho certeza se era barco ou navio, mas eu sei que tinha uma cama no mar. Eu sentia, pelo jeito como balançava - ou talvez eu tenha só imaginado, não sei bem. — Suaves, os dedos se estalaram, uns nos outros. — Lembro de pensar sobre os Shellders, mas não lembro o quê. E, foi só. Não sei se dormi, mas acho que isso não importa. — Deu de ombros, e os encolheu em ritmo manso. — ...Quando acordei, não tinha mar, nem Olivine, nem Johto. Eu não sei o porquê, e acho que nunca vou. — Disse, balançando a cabeça mais uma vez e arrumando vagamente uma das madeixas atrás da orelha. — Meus pais me levaram de lá, mas nunca quiseram explicar o motivo. E, acho que não posso dizer que foi por falta de tentativa. — Riu, e respirou profundamente mais uma vez. — Talvez seria válido perguntar de novo, mas não acredito que tenha como. Eu nem sei onde eles estão, ou se estão. — Divagou, balançando os ombros e, enfim, desencostando as costas (tinha se virado, afinal) das barras, volvendo a atenção para a loira. Tinha consciência de que talvez não fosse um "relato" lá que contentasse alguém - ora, ela mesma havia admitido há pouco tempo atrás...
Mas, não era como se estivesse com um compromisso de hora marcada, huh?
— ...Não sabia que você estava lá. Na Battle Tower, digo. — Comentou, num balançar de cabeça vago. Chegaria a questioná-la sobre por qual motivo a loira não a teria abordado durante a competição mas, oh, seus atos e palavras até o momento haviam deixado tudo claro o suficiente para que precisasse fazê-lo. Não precisaria pensar muito sobre como aquele encontro provavelmente não era nada, nada do agrado de Bley, mas...
...mas...
Mas, queria tanto que fosse.
...
— ...É difícil não ganhar quando jogam um recém-nascido pra batalha. — Afirmou, dispersa e sem vontade - e com um gosto amargo na boca ao lembrar do quão patética aquela vitória fora. Num novo e último balançar de cabeça, a ruiva alcançou a própria chave e a pendurou pelo cordão na barra de ferro à frente, deixando-a ao alcance de Karinna para caso a moça desejasse pegá-la. — ...Aí. Acho que você também vai querer tentar. — Concluiu, num encolher de ombros antes que os passos se voltassem e, lentos, afastassem. Por fim, agora com a chave dada pela loira em mãos, realizou uma nova tentativa de destrancar a porta da cela que a aprisionava.
De qualquer jeito, não tinha pressa.
Qual a diferença de ficar presa atrás de grades, se quando fora delas seu coração e psicológico ainda se mantinham trancafiados?
...
Maldição.
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O amanhã é efeito de seus atos. Se você se arrepender de tudo que fez hoje, como viverá o amanhã?