Com paciência infindável a Madame se permitiu carregar todo o processo de embaralhar, espalhar e aguardar as decisões de Karinna acerca de quais cartas seriam as escolhidas daquela sessão - munida à ela, e também ao silêncio estarrecedor, Tshilaba estendeu as mãos macias na direção de todo o resto do baralho, retirando-o pouco a pouco, até que só restassem aqueles retângulos que com tanto temor foram apontados pela hesitante Rocket. Chegava a ser engraçada, a maneira como um simples deque era capaz de impor tamanha tensão nos ombros da moça mas, oh, eis aí a dualidade da qual falávamos anteriormente: Afinal, bem é possível que uma explosiva existência tenha seu amargo momento de fraqueza.
Ouso dizer que esse nem era o pior deles.
— Muito bem. — Madame sorriu, e respirou fundo enquanto observava o verso das cartas estendidas por sobre a mesa, enquanto empilhava as excedentes em uma de suas bordas.
— Sabe, existem... Muitas maneiras de se interpretar as cartas. — Comentou, observando com tranquilidade as cinco escolhidas por Karinna.
— Alguns usam o significado mais bruto, por assim dizer... — Então, tranquilamente, foi organizando os objetos sobre a mesa. Imagine uma cruz; A primeira carta, posicionada ao centro. A segunda, ao oeste - a terceira, ao leste. A quarta carta foi repousada ao topo e, por fim, a quinta, que logo obteve seu lugar na parte baixa da figura.
— ...Outros, gostam de se aprofundar um pouco mais a respeito de cada uma, em busca de um sentido mais amplo para cada uma das tiradas. — Acrescentou, observando cautelosamente a organização feita por si mesma.
— Eu gosto de ambas as formas. — Disse, erguendo o olhar âmbar para o dupla, sorrindo tranquilamente diante das tensões que emanavam de seus corações.
— Eu acredito que, às vezes, algumas pessoas são capazes de ouvir mais que outras, ou que merecem a chance de uma melhor compreensão. Claro que, tudo depende de hora, lugar... — Um breve olhar de canto na direção do ruivo ao lado da moça.
— ...e até companhia, em certos casos. — Deu de ombros, antes de enfim repousar a mão sobre a carta central, a primeira de todas.
— Mas não acho que queiram ouvir esses detalhes bobos de mim, certo? — Riu, balançando a outra mão como quem diz para deixar para lá.
— Tenho certeza que tem algo bem mais interessante aqui embaixo que você possa querer ouvir, Karinna. — Tshilaba sorriu, o âmbar de seus orbes se chocando contra a maresia agitada dos alheios - mas, espere,
quando exatamente haviam se apresentado para a mulher?
...
— ...Essa carta, — Prosseguiu, usando a ponta da unha para bater no verso da primeira escolhida pela coordenadora.
— ela é basicamente um resumo da sua situação atual, se quiser colocar desse jeito. Ela é o problema que você tem que lidar, a questão que te atormenta e que você precisa resolver. — Disse, respirando com tranquilidade, antes que os dedos se prendessem à borda da carta, virando-a sobre a mesa.
— Ah, essa é interessante. — A mulher comentou, inclinando-se com suavidade sobre a mesa, os olhos correndo pelos traços rústicos do retrato.
— Deixe-me apresentá-la; Esse é O Papa, ou o Grande Sacerdote, como preferir. — Disse, apoiando com delicadeza o indicador no centro da figura.
— Aqui, ele representa um conflito em relação à crenças pessoais e religiosas, ao sagrado, à instituições maiores - que não necessariamente fazem parte da mesma coisa. — Madame percorreu o olhar sobre a imagem de Karinna, estreitando-o com delicadeza.
— Ele diz que há toda uma necessidade de reavaliação das crenças, de como você enxerga o todo ao seu redor. — Continuou, afastando um pouco o dedo da carta.
— Pode ser que não seja a primeira vez que eu diga isso, mas é preciso se ter cuidado com ela. — Aconselhou, balançando a cabeça com discrição.
— É possível que, ao ser muito exposta à certas ideias a respeito de religiões ou simplesmente organizações maiores, você se apegue em demasia em coisas ultrapassadas, errôneas, e não se permite mais enxergar um mesmo ser, ou causa, por um outro ponto de vista, outro ângulo, e você pode entrar em uma espiral de amargura. — Explicou, balançando a cabeça em negativa.
— Essa carta, Karinna, ela te pede paciência. Ela grita pela sua necessidade de esperar, pela necessidade de uma visão mais ampla e menos drástica de tudo que você acredita, independente do motivo pelo qual acredita. — Disse, paciente, antes de volver a atenção para a segunda carta, aquela posicionada à esquerda da cruz.
— Essa carta, — Prosseguiu, apontando na direção da dita cuja.
— Ela representa a influência que o seu passado possui em relação à questão atual. — Explicou, enquanto os dedos já se preparavam para virar a carta de cabeça pra cima.
— É algo que se ancorou em seu espírito, sua energia, e você arrasta até hoje essas correntes, por assim dizer. — Disse, antes de finalmente virar o retângulo amarronzado.
— Oh! Esse, meus senhores, é O Mundo. — Apresentou, acomodando-se um pouco melhor na cadeira.
— Aqui, ele aponta um apego de algo que há muito já se perdeu - um fantasma, que te persegue pela sua própria negação de não deixá-lo ir. — Explicou, tomando um tempo para uma respiração profunda que, inevitavelmente, puxava para os pulmões o odor agradável do incenso.
— Isso me diz que você teve bons momentos no passado, me diz que houve um tempo em que realmente se sentia parte de algo mas, então... — Um estalar de dedos.
— Esse algo se perdeu, dissolvendo como pó na água. E então, você ficou tão presa à esses momentos, que simplesmente se encontra incapaz de seguir em frente. E dessas amarras, só você pode aceitar se libertar, ou de nada adiantará. — Desenvolveu, antes de passar para a terceira carta, que se acomodava tranquilamente na ponta oposta à atual.
— A terceira carta, ela revela as tendências ao futuro próximo. — Disse, alternando o âmbar entre a loira e o ruivo.
— Mas não entenda errado: Não estou aqui fazendo uma previsão que você nunca vai poder se desviar, independente do que faça, nem nada do tipo. — Acrescentou, as pupilas firmando-se na imagem da especialista.
— Tudo depende exclusivamente de suas decisões, de suas atitudes. Muita gente acredita que uma leitura de tarô é algo que vai resolver todos os seus problemas num passe de mágica, vai te entregar tudo de bandeja e você simplesmente pode só seguir a onda e parar no tempo. — Comentou, balançando a cabeça num gesto vago.
— Então, independente de como for, me sinto na obrigação de lembrar que não é assim que acontece. — Bateu na tecla, sem hesitar.
— A leitura é um guia para as pessoas que se perdem, para as que precisam de um direcionamento no meio do caminho. Quem garante ou não o que vai acontecer, porém, é exclusivamente você, Karinna. — Foram suas últimas palavras, antes de enfim revelar a carta que esperava.
— ...O Mago, huh. — Tshilaba sorriu, roçando a ponta dos dedos pela borda desgastada da superfície do objeto.
— Curiosamente, esse aqui é um que costuma aparecer bastante na minha mesa. Claro, é só coincidência, mas eu sempre acho divertido de pensar a respeito. — Deu de ombros, deixando escapar um suspiro relaxado antes de volver a atenção para a monotreinadora.
— O Mago aparece para dizer que é hora de agir, minha menina. — Explicou, enfim, com um "quê" carinhoso que beirava um tom absurdamente maternal.
— Ele diz que é hora de tomar as rédeas de sua situação e parar de se deixar levar por uma correnteza incerta. Felizmente, como eu dizia, essa carta representa o que tende a acontecer em um futuro próximo. — Ela piscou, puxando ar pelo nariz.
— As chances que você precisa para moldar uma realidade ruim em algo bom, elas serão acompanhadas pela energia do Mago. Você precisa encontrar e lidar com as forças do seu interior para poder deixar para trás os temores, as inseguranças, auto-sabotagens, as crenças, o que for; Já existe essa energia dentro de você, minha jovem. Tudo que precisa fazer para que ela encontre a luz que pulsa na tu'alma, é tua própria confiança nela. — Desenvolveu, pousando as mãos sobre a mesa.
— Mas lembre-se, que também é importante saber distinguir quando o silêncio, a compreensão e a passividade são necessários. Nem sempre uma explosão de adrenalina, ou fazer tudo de uma vez, é a melhor coisa que se pode acontecer. — Ela acrescentou, enquanto estendia a mão para a quarta carta.
— Lembre-se bem disso. Se você já tem a competência de transformar as coisas que toca, tudo o que precisa fazer é canalizar por seu melhor.A cigana, então, se deu ao luxo de parar um instante: Não só para que pudesse respirar, mas também para permitir que as informações ditas até então se assentassem com mais tranquilidade na cabeça e no coração da dupla, mas principalmente no ser da especialista em psíquicos, visto que era ela a fonte de energia vital daquela breve leitura de tarô. Sem que achasse necessário uma única palavra a mais, se recostou na cadeira, analisando pacientemente a expressão da moça por alguns instantes. Tinha consciência de que nem sempre as pessoas estavam preparadas para (ou tinham desejo de) ouvir todas aquelas coisas, mesmo que elas próprias fossem responsáveis por adentrar a belíssima tenda mística que dava as boas-vindas para todo e qualquer visitante do parque de diversões.
...
O silêncio não poderia perdurar para sempre, porém.
— O que nos leva, então, à quarta carta. — Continuou, com um sorriso tranquilo no rosto.
— Para falar a verdade, ela tem uma rede de significados um pouco... Maior, por assim dizer. Mas, de maneira geral, eu a interpreto como aquilo que nós não queremos enxergar. — Disse, endireitando a coluna e se inclinando um pouco para a frente.
— Algo que, no fundo, você sabe o que é, ou pode até ter uma noção, mas esconde por detrás de alguma máscara torta, seja sua ou de outra pessoa, até coisa, quem sabe; O fato é que se evita admitir, seja por medo ou negação. Não importa exatamente o motivo, em realidade. — Comentou, enquanto pousava a mão sobre a carta do topo da cruz.
— Talvez seja um tanto quanto confuso no começo, mas é um pouco mais fácil se acostumar com a ideia quando se ouve o que o baralho diz. — Concluiu, antes de mais uma vez fazer o trabalho de virar a carta por sobre a mesa.
— ...Ora! — Madame exclamou, deixando escapar um riso gostoso da garganta, balançando a cabeça quando observou a figura estampada no retângulo de papel.
— Bem, não sei dizer se isso representa uma surpresa ou não, mas... — Ela sorriu, tamborilando com paciência os dedos por sobre a mesa.
— Esses, senhores, são Os Enamorados. — Apresentou, apontando-a com uma das mãos.
— E, como devem imaginar, ela representa o amor. Em realidade, essa carta envolve tanto sentimentos românticos, quanto os sexuais. — Disse, o olhar passeando serenamente de um ao outro.
— Acredito que o que eu melhor possa dizer é que, bem, possa existir a possibilidade de um amor que, de certa forma, você tenta aceitar como outra coisa, pelo simples fato de não aceitá-lo. — Comentou, enquanto direcionava a mão para a última carta sobre a mesa.
— Mas eu acredito que não precise me prolongar nesse assunto, não é? — Questionou, oferecendo aos dois um breve sorriso antes que a atenção volvesse para o quinto retângulo amarronzado.
— Aqui, eu trago para você uma possível solução para o problema inicial. — Explicou, apontando com o mindinho na direção da carta central, logo acima da última.
— Mas não entenda errado: É só uma possível solução. Não quer dizer que é garantido, não quer dizer que é a única. Tudo bem? — Perguntou antes de, enfim, virar a carta de cabeça para cima.
— ...Estava demorando para essa aparecer. — Tshilaba murmurou, com um riso rouco que ecoou abafado pela tenda.
— Ela também costuma vir bastante, se quiser saber. É A Morte. — Apresentou, enquanto se encostava devagar contra as costas da cadeira, coçando a bochecha com a ponta de uma das longas unhas pintadas de vermelho.
— Mas, não leve ao pé da letra. — Acrescentou, sem pressa, balançando a cabeça com gentileza.
— Morte não significa a morte, propriamente dita. — Disse, se endireitando na cadeira.
— Morte é a carta que representa a transformação, a passagem de um estágio para o outro. Ela retrata o final de um ciclo desgastado, para que um novo e firme possa resplandecer no seu horizonte. — Desenvolveu, esticando uma das mãos para apontar a donzela de madeixas douradas.
— Essa carta diz que você precisa deixar o seu passado para trás, Karinna, e se entregar ao novo, se permitir que as novas experiências transformem sua vida e limpem os tormentos que sussurram na sua alma. — Pontuou, com convicção.
— ...Pois é assim, e só assim, que você pode verdadeiramente superar e tomar as rédeas da balbúrdia psicológica que urra no seu âmago. — Acrescentou, apoiando a mão com delicadeza sobre a ferida da moça, a suavidade do toque malmente podendo ser percebida por sua vítima.
— ...Você sente, não é? Ela grita. — Disse, em baixo tom, quase como se segredasse para a própria consciência da criminosa.
— Sua essência grita, Karinna Bley. — Reafirmou, incisiva.
— ...E você precisa deixá-la se libertar.