A última sopa do ano.
Driftveil era uma cidade feia. De todas que Marie havia visitado até então era a que menos havia gostado, as ruas pequenas e feitas de pedras irregulares estavam sempre úmidas e seus paralelepípedos sujos de lama, de noite não se via uma alma viva na rua, e os fins de semana eram como as noites. Definitivamente não era o lugar onde a moça esperava passar seu fim de ano, sozinha e sem amigos, a cidade não possuía nem um bar decente onde pudesse afogar suas mágoas no álcool, todos os botecos que havia frequentado até então eram sujos, barulhentos e repletos de trabalhadores do frigorífico local que nunca a deixavam em paz, a vida de Marie em Driftveil se limitava a seu pequeno quartinho e seu único amigo era Tobias, o Mienfoo que às vezes fazia papel de sous chef nos buffets que ela era contratada para fazer.
Naquele dia em especial, o último do primeiro ano que a moça havia passado no novo continente, a cidade estava coberta de neve, não a bela neve alva dos filmes e seriados, mas a suja e grudenta que entrava nas galochas e deixava as meias úmidas e desconfortáveis. Marie descia pela rua principal da cidade em direção ao famoso mercado local, o único lugar de seu agrado naquela cidade tão desconfortável, talvez pelo ambiente ser completamente diferente de qualquer outro lugar nas proximidades, enquanto Driftveil era fria, úmida e cinza, o mercado era morno, colorido, cheio de vida e extremamente limpo. Aquele mercado era o único motivo pelo qual Marie ainda não havia juntado suas tralhas e ido embora da cidade (bem, o mercado e o baixíssimo preço do aluguel de imóveis), a alta variedade de ingredientes frescos e difíceis de achar tornavam Driftveil o lugar perfeito para a chef terminar de montar o cardápio de seu serviço de buffet.
Abraçada pelo pesado casaco que havia comprado em uma liquidação em Nimbasa, Marie terminou de percorrer a curta distância entre sua casa e o mercado e antes que pudesse perceber, já estava batendo suas botas no carpete de entrada e jogando para trás o pesado capuz, deixando os mais variados aromas tomarem conta de seu olfato. Já havia visitado aquele lugar um milhão de vezes, e a esta altura já sabia se mover por ali até mesmo de olhos fechados, juntando a isso o fato de que já tinha em mente todos os ingredientes que precisava, não levou mais do que cinco minutos pulando de prateleira em prateleira recolhendo os itens mágicos que usaria na confecção do último jantar do ano.
Já na fila do caixa, se via ansiosa e preocupada, será que todos os itens chegariam bem em casa? Será que teria tempo o suficiente para fazer tudo antes da meia noite? Será que Tobias se daria por satisfeito? Marie não queria ter que sair no dia seguinte para comprar comida para o folgado pokémon. Se distraiu tanto com os próprios pensamentos que mal percebeu que já havia chegado sua vez, passou pelo caixa os tomates, pepinos, pimentões, cebolas, alho, azeite, vinagre e a amassada embalagem de Casteliacones que havia encontrado perdida no fundo da geladeira, certamente alguma sobra do último verão.
Com as sacolas penduradas no braço, correu de volta para o pequeno apartamento onde morava, fez o caminho de volta em tempo recorde, e logo cruzava porta adentro, deixando um rastro de casaco, botas e afins por onde passava. “Tobias, cheguei! Vem aqui me ajudar a fazer o Gazpacho.” O Mienfoo dormia confortável em cima de uma almofada localizada ao lado da janela que dava para a rua, em dias chuvosos o pokémon lutador gostava de sentar ali e observar as gotas de chuva escorrendo preguiçosamente pela superfície lisa do vidro.
“Mien?”
“Sim, consegui encontrar quase tudo, o milho estava em falta mas acho que não vai fazer muita diferença se usarmos o da lata.”
Chef e Sous Chef prontamente vestiram seus aventais e começaram a silenciosamente fatiar todos os ingredientes, Marie nunca havia se entusiasmado muito por pokémons, isso era coisa de seus irmãos, que quando jovens viviam se arrastando pelo quintal atrás de insetos e outros bichos brincando de treinador. O sonho de Marie sempre havia sido outro, a garota havia nascido para conhecer o mundo ou pelo menos metade dele, sua relação com Mienfoo nasceu no dia em que descobrira que o mundo talvez não fosse tão belo e magnífico como ela havia imaginado, e desde então um profundo elo havia se formado entre a dupla, de forma que hoje Marie e Tobias conheciam um ao outro melhor do que ninguém.
Ingredientes devidamente cortados e fatiados, era hora de colocar tudo no liquidificador e bater bastante, despejaram a substância homogênea em uma panela e colocaram para descansar na geladeira. “Mamãe sempre fazia umas torradas para acompanhar, acho que ainda dá tempo de fazermos algumas, o que acha?” perguntou Marie, o pokémon assentiu com a cabeça e logo a dupla voltava a executar sua dança sincronizada pela cozinha, dessa vez cortando pão, preparando temperos, ligando o forno e todos os etcs que envolviam a produção de torradas.
O tempo na cozinha parecia não passar nunca, Marie sempre havia tido essa impressão, ainda mais depois que começara a trabalhar com seu novo parceiro, de forma que se surpreendeu ao ver que faltava pouco mais de uma hora para o fim do ano. Retirou o gazpacho da geladeira e pôs os pratos na pequena mesinha de madeira que ficava perto da janela onde Tobias gostava de dormir, o lutador a seguia com a travessa de torradas recém saídas do forno.
A dupla estava tão faminta que nem pensaram em discursos ou coisas do gênero, apenas se serviram e começaram a comer como se não houvesse amanhã, Gazpacho podia não ser a comida mais adequada para o clima frio de Driftveil, mas a sopa transportava Marie para tardes de verão em Lilycove e almoços na praia com Gazpacho geladinho saído da garrafa térmica. A pimenta em pó utilizada para temperar as torradas faziam com que mesmo apesar da sopa fria a dupla se sentisse aquecida por dentro.
Marie comeu tanto que foi da mesa de jantar direto para a cama, sobrando para o pobre Tobias a chata tarefa de retirar os pratos da mesa e lavar a louça. A sopa havia suprido na chef um vazio que ela nem sabia que existia, e despertara nela esperanças de dias melhores, o último ano havia sido péssimo, mas recordar dos bons dias nos quais havia sido criada fez com que se lembrasse de que anos ruins eram uma constante presente na vida de praticamente todos.
Tobias foi o único residente do pequeno apartamento a ficar acordado para assistir os fogos de artifício que simbolizavam a chegada do novo ano, as luzes brilhantes e barulhentas que tomavam conta dos céus não lhe enchiam os olhos. ”Apresentação Medíocre” pensou para si mesmo ”Assim como a sopa, quem em sã consciência serve sopa gelada no inverno? Pelo visto Marie não tem prestado muita atenção no que eu venho ensinando a ela, infelizmente mais uma vez o grande Tobias segue sendo o melhor chef do continente, frustrante.” O lutador logo tratou de apagar as luzes e voltar para sua cama improvisada debaixo da janela, a sopa de fato havia trazido promessas e mudado expectativas para o novo ano, para a frustrada chef, esperanças de dias melhores, e para o arrogante Mienfoo, que por sua vez não tinha noção de tempo, confortáveis massagens ao ego.