(014) — heart of glass

Era difícil saber exatamente há quanto tempo não me sinto bem com uma vitória. Eu sei, eu sei, já falei sobre isso, mas ultimamente tenho me sentido uma treinadora tão... Fracassada. Decidi expandir meus horizontes para além de psíquicos porque percebi que nunca, nem mesmo se eu quisesse, conseguiria ser uma Sabrina da vida. E consegui seguir falhando miseravelmente, mesmo com monstrinhos de tipagens diferentes. Mas esse embate, esse esforço de Okawa e Nuka para vencer e me deixar orgulhosa... Existem poucas coisas nesse mundo que acalentam meu coração desse jeito. Talvez, e somente talvez, eu esteja melhorando e no caminho para algo mais grandioso ainda.

— Obrigada, filhas. — abracei as pequenas-não-tão-pequenas-assim, deitando a cabeça no braço de Nuka — Estou orgulhosa de vocês. — voltei meu olhar para o céu de Blackthorn, enfeitado de nuvens tão baixas que tenho certeza que poderia tocá-las com uma simples alçada do braço; estava na cidade que possuía o Pokémon que minha mãe sempre quis e, finalmente, tinha força para tentar encontrar um — ... — era impossível não se emocionar e lembrar de todas as vezes que mamãe falava sobre o monstrinho dragão e rezo para encontrar uma fêmea e nomeá-la Ivy, em homenagem à saudade que sinto de ouvir seu nome ressoar em meus ouvidos — ... Venham, retornem as duas.

Com um último afago, deixei que Altaria e Druddigon descansassem da batalha, seguindo na direção indicada pelo enfermeiro. Meu consciente estava em outro lugar, com o corpo movimentando-se em padrão pré-estabelecido, sem qualquer noção do que acontecia à minha volta. Se algo explodisse do meu lado, muito provavelmente eu nem perceberia. Joguei as longas madeixas ao vento, erguendo a cabeça e cerrando brevemente os olhos, aproveitando a gélida brisa uma vez mais: como eu queria você aqui. Existem dias que tento me lembrar da sua voz e, sinceramente, ninguém no mundo sabe o quanto me culpo quando não consigo. Sinto que cada detalhe, cada lembrança e cada espacinho vem sendo deixado para trás, mesmo contra minha vontade, como um livro onde as páginas já estão tão gastas que suas palavras desaparecem com o tempo, consumidas pelas traças que vivem ali dentro.

O que fazer quando você é sua própria traça mas também seu próprio livro?

Suspirei, deixando que os olhos lutassem contra uma leve insurgência de lágrimas que decidiam dar o ar da graça. Ninguém me conhece aqui, mas não me darei ao luxo de demonstrar qualquer tipo de tristeza. O ritmo do caminhar aumentou e balancei a cabeça uma única vez, tentando afastar os pensamentos negativos; até que meu PokéNav tocou. Um leve sorriso surgiu no canto dos lábios com a única pessoa que conseguiria arrancar um desses quando minha cabeça estava em estado crítico. Minha irmã, Natalie.

Mensagem para Natalie escreveu:

Venusaur e Lucario? Que lindos! Eu nem sabia que você tinha um Lucario. A próxima tem que ser do Ariel, para ele ficar ainda maior e quase derrubar mais tetos de cavernas-perdidas-pelo-tempo nas nossas cabeças.

Ah... Eu vim para Johto. Não fui em Olivine e nem sei se conseguirei ir. Não tenho cabeça pra isso, pelo menos não sozinha. Estou atrás de um Pokémon que minha mãe sempre gostou, mas não sei se vou conseguir encontrar. A missão foi tranquila e acabei capturando um Swablu, que já virou uma Altaria! Ela é toda metida, você tem que conhecer.

Toma cuidado, tá bom? Sei que você não é atrapalhada que nem eu, mas sabe que problemas tem um tipo de imã pra gente!

Terminei de escrever a mensagem e o leve sorriso havia se estendido de orelha à orelha. Sem saber, mais uma vez minha irmã havia conseguido afastar as dúvidas e os maus pensamentos da minha cabeça, mesmo há milhares de quilômetros de distância. Se isso não era uma conexão de outro mundo, não sei o que mais seria. Que saudade dessa cara de Wooper.

Guardei o eletrônico na bolsa, finalmente prestando atenção no caminho; quando percebi, estava mais próxima do que imaginava da Casa dos Anciões. Veremos como serei recebida, não estou lá com muita paciência para jogar conversa fora.

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Blackthorn City

Apesar dos devaneios e da mensagem digitada, quando percebi, me encontrava diretamente em frente ao portão da Casa dos Anciões. A princípio toda aquela magnitude me espantou; não era possível que um lugar daquele tamanho comportasse somente alguns senhores e senhoras de idade de alto escalão, principalmente por conta da vizinhança desafortunada. Alguma coisa não me cheirava muito bem, mas já estava aqui, né? E a curiosidade também estava me matando. Respirei fundo e, enquanto procurava um interfone ou algo do tipo, os portões se abriram. Estranhei, mas comecei a caminhar em passos lentos e calculados, observando cada detalhe daquele local com precisão.

O cuidado com que as plantas da entrada eram cuidadas já revelava que o local estava longe de ser abandonado como a vizinhança, com manutenção constante e algo ou alguém que gerenciava todo aquele lugar. Mantê-los longe do restante da cidade também deve ter o seu porquê, mas a princípio não me interessa. Pelo caminho era possível ver diversos idosos tomando chá ou aproveitando uma música bem antiga, no estilo que minha falecida avó o fazia. Abri um meio sorriso, parando por um único segundo para observá-los aproveitando a melodia de sua própria maneira, balançando a cabeça e alguns até mesmo arriscando alguns passos sentados.

Tornei a caminhar, ainda atenta nos arredores. Peguei o caminho mais largo, evidentemente o principal, com o intuito de adentrar a grandiosa mansão. Percebi ainda mais o dinheiro que não era gasto em local como esse, com portas automáticas e de vidro, bem como seus diversos andares e elegância. O contraste com toda aquela vizinhança começava a me incomodar -- estou longe de ser uma Robin Hood da vida, mas só quem sofre com a discrepância de riquezas em uma cidade sabe como é. Todo o luxo da elite de Cianwood e Olivine sempre contrastou com a pobreza da minha família e dos nossos vizinhos, algo humilhante e, honestamente, revoltante. Mas não era para isso que estava aqui. Mantém sua cabeça no jogo, Karinna.

Suspirei e adentrei a porta de vidro principal, somente para perceber duas mulheres, jovens, distribuindo remédios. Todos tinham a mesma coloração e tamanho, o que já me deixou escaldada... Quais são as chances de todos esses velhos terem o mesmo problema de saúde?

— Oi! Sou eu sim! — abri um enorme sorriso, ajeitando minhas vestes timidamente; precisava entrar na personagem, né? — Vim visitar vovó sim. Estive viajando todos esses anos e resolvi fazer uma surpresa. — dei uma leve risada — Ouvi falar muito bem daqui pela minha família, mas estou surpresa! Vocês cuidam muito bem desse lugar! — vai que puxar saco ajuda... — Aliás, vocês viram ela por aí? Muito provavelmente deve estar se exibindo com sua tiara. Depois de alguns anos ela ficou beeeem exibida, sabe como é com a idade, né? — ajeitei as madeixas, colocando-as à frente do ombro direito — Me disseram que sua apresentação foi incrível, estou doida para ela me contar vários detalhes.

Não saber o nome da senhora me deixou em uma saia justa, mas esperava que toda aquela empolgação mentirosa ajudasse a enrolar as garotas... Veremos.

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Blackthorn City

As coisas começavam a ficar extremamente estranhas. Como se não bastasse aquelas pílulas idênticas dadas para todos os idosos, era como se algo na atmosfera começasse a mudar, deixando o ar mais pesado do que de fato era. Todos os senhores e senhoras pareciam obcecados pelo tal medicamento, como se fossem viciados neles. Muito provavelmente alguma substância que os deixa à mercê do que quer que seja que acontece aqui. Até senti um pouco de pena dos velhos, mas melhor do que resgatá-los, seria dar essa informação à minha organização e tomarmos conta desse edifício. Miss B ficaria muito feliz.

— Tudo bem. — respondi, curta porém simpática, mesmo com sorriso querendo desaparecer por conta do nervosismo crescente; aos poucos aquele lugar começava a ficar hostil — Vamos lá.

Não pude deixar de reparar que não havia nenhum idoso na seção que a mulher me levava. Na realidade, não havia nada além de longos corredores vazios, sem qualquer tipo decoração... Estranho. Como a funcionária andava na frente, sorrateiramente busquei a esfera de Starmie e a segurei atrás das minhas costas; o Walkie-Talkie apitou e a outra disse algo sobre um ritual, então, mesmo se houvessem câmeras, ela não estaria observando o que estávamos fazendo. Até tenho certa curiosidade em saber o que seria um ritual feito nesse lugar, mas já tive minha porção de cultos malignos do ano... Coitados desses velhos, mas minhas mãos estão atadas.

Ou estariam, se não estivessem tentando me envolver em algum tipo de armadilha.

Primeiro "Samantha" disse que me levaria aos aposentos da Lady Tenshi, mas na sala não havia nada além de duas cadeiras e o que parecia ser um copo d'água — certamente não era, duh. Aquilo estava longe de ser algum tipo de aposento e sim uma sala de interrogatório, muito provavelmente onde levam todas as pessoas que entram na Casa dos Anciões. Talvez os rituais sejam com os visitantes e não com os velhos. Pode ser até que não seja, mas da forma como minha cabeça funciona, tudo acaba sendo para me prejudicar; engoli seco, com a adrenalina já começando a correr pelas minhas veias, principalmente pelo leve nervosismo no tom da voz da mulher que queria porque queria que eu entrasse na sala.

Ha, não mesmo. Outro sacrifício como em Fortree onde quase morri de verdade.

Não.

Não.

DE NOVO NÃO.

— Er... Samantha, certo? — sorri, aproveitando para prender meu cabelo em um alto coque — Posso ir com você buscar minha avó, o que acha? Ela ficaria mais confortável em seu quarto. Já que claramente não é aqui que ela fica, né? — à essa altura sequer conseguia manter a personagem boazinha, então precisava mudar o meu plano; fitei o final do corredor com uma feição de extrema surpresa — O QUE É AQUILO NO FINAL DO CORREDOR!? — independente se a mulher olhasse ou não, graças aos treinos que fiz com Daisuke, agora consigo lutar decentemente; inclinei o meu corpo, chutando o corpo da mesma para que caísse ou perdesse o equilíbrio — Starmie, Psychic! — o indicador direito apertou o botão central da esfera bicolor em minhas mãos, liberando a Pokémon — Controle seu corpo. Não deixe que mova um dedo sequer.

Não sabia se meu plano daria certo, mas agora tudo estava perdido. Não ia ter como encontrar a velha da tiara em um local tão grande quanto esse. Mas uma coisa é certa: se eles atrapalharam meus planos, certamente eu também atrapalharia o deles.

Agora além de procurar a tiara, eu também acabaria com o ritual.

Mas um dia comum na minha vida, né?

Day Care escreveu:

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Blackthorn City

E agora entra a parte que eu não me orgulho, mas devo dizer que foi demasiadamente deliciosa.

Com Starmie controlando o corpo da mulher para que não movesse um dedo sequer, um meio sorriso sádico tomou conta do meu rosto, bem como da minha postura: finalmente deixava aqueles trejeitos de garotinha inocente da personagem que criei e vestia, figurativamente, as roupas da Rocket que sou. Balancei a cabeça negativamente uma única vez, semi-cerrando as orbes cerúleas na direção da funcionária.

— Aperte, Gyoza. — respirei fundo, fazendo um sinal negativo com o indicador direito para mulher — Você não faz as perguntas aqui, Samantha. — com a outra mão acariciei a ponta norte da estrela dorsal da psíquica — Vou perguntar somente uma vez... Onde está a tiara? E onde é o ritual? — o indicador parou no ar, agora fazendo movimentos rápidos para a esquerda; um sinal para que Starmie batesse a cabeça da mulher na parede; o suficiente para machucar, mas não para desacordá-la — Vamos, me responda e talvez eu deixe você sair viva dessa situação.

Infelizmente, não era verdade. Se há algo que a Organização me ensinou da pior forma possível é que não se pode ter ponta soltas em qualquer lugar que seja. Poupar a vida daquela mulher poderia me trazer problemas no futuro e, sinceramente, eu... Não queria. Queria assitir Gyoza bater a cabeça dela na parede até estourar, ceifando suas dezenas de anos restantes de vida ali mesmo. Era quase como uma chama no âmago que era alimentada pela crueldade, pela maldade, pela minha própria perversidade. Respondendo o que eu queria saber ou não, a jornada daquela mulher acabou no momento que cruzou seu caminho comigo e tentou me enganar.

Sinto muito, Samantha, mas você será somente mais uma para minha pilha de corpos.

— ... Acabe com isso, filha.

Busquei o Walkie-Talkie da mulher em seu bolso traseiro, virando de costas e caminhando, lentamente, na direção que havia vindo anteriormente. O silêncio era ensurdecedor, sendo incomodado somente pela pressão do som que ecoava quando o crânio da mulher se encontrava contra a parede. Um sorriso desumano surgiu no meu rosto, de orelha à orelha, com meu corpo em frenesi pelo que aconteceria em pouquíssimos segundos.

Uma batida.

Duas.

Três.

Quatro.

Foram necessárias quatro com extrema potência da psíquica para matar aquela mulher e deixar sua feição irreconhecível, derramada sobre sua próprio líquido carmim que há pouco estava correndo em suas veias e artérias. Starmie girou no ar e me alcançou, flutuando ao meu lado na direção que viemos.

— Já já tem mais, filha. Bom trabalho.

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Apesar da mulher não ter revelado nada, a sede de sangue me fez apertar o passo, apressada para chegar ao hall e seguir na direção oposta a que fui para tentar ser ludribriada. Com uma única cutucada, Starmie me fez parar bem rente à esquina do corredor, sinalizando que havia algo por ali e que não seguisse adiante. O Walkie-Talkie começava a tocar, com a voz da outra funcionária ecoando pelo alto falante; pelo visto aquele grupo de idosos seguiria na direção de onde o ritual acontecia.

— Vamos segui-los com cautela, Gyoza. — sussurrei, observando os velhos caminhando na direção de onde o culto possivelmente estava acontecendo — Quando chegarmos lá... É hora de acabar com a festa. — busquei e segurei uma esfera em cada mão, a de Altaria e a de Beartic — Suas irmãs vão adorar participar.

Com bastante cautela e se esgueirando pelas beiradas e cantos, seguimos as duas para onde os Anciões se direcionavam.

Que diabos será que está acontecendo?

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