Como já bem pontuado, era difícil dizer ao certo a razão por trás de toda aquela pose do unoviano - se por influência dos fantasmas do cemitério, por vingança ou, no pior dos casos, até mesmo por simples e puro prazer. Quase impossível então era saber ao certo o que a felina que o acompanhava achava de tudo aquilo, considerando a expressão inflexível e o jeito silencioso da monstrinha, que se limitava a seguir ordens (e até adiantá-las, de certa forma) sem sequer olhar uma única vez as reações estampadas nas feições de seu treinador e, mais importante, sem ousar interrompê-lo durante todo o procedimento aplicado ao homem de cabeça raspada. O único real movimento que fizera havia sido o dos braços, ao preparar o lançamento do poderoso raio que praticamente fritou o Aqua vivo mas, além disso, os manteve caídos ao lado do corpo, os olhos vigilantes passeando por toda a cena que se desenrolava à sua frente sem exibir sequer um único tremular de boca.
Suaves, suas pupilas escuras se voltaram na direção de Valassa, com a singela menção de decepção. A gatuna também não protestou diante das palavras embebidas de sadismo daquele que, até o momento, só havia conhecido o lado parceiro, pacífico e brincalhão - e nem mesmo ao ver o sorriso quase dócil se esboçando em seu rosto, em contraste violento diante de cada sílaba pronunciada. O olhar profundo acompanhou cada ínfima movimentação realizada por seu mentor, desde mãos na cintura até o ar quase tedioso que aos poucos dominou seu rosto, à medida que pensamentos disformes dominavam-lhe a mente. A vigília silenciosa se manteve sobre Luch, enquanto se despedia de Jean e, enfim, quando o braço do rapaz foi estendido para si.
Em um primeiro instante, não se moveu.
Vítreo, o olhar se manteve fincado no - até então - genérico moreno. Sem emoção alguma, se manteve nele por alguns segundos antes que volvesse na direção da figura à frente, largada contra a estrutura da fonte. Só nesse momento os membros criaram vida outra vez, e a felina ergueu as patas na altura do peito, encarando os resquícios das faíscas elétricas que ainda fluíam por entre seus dedos - e, como que em avaliação, os moveu vagarosamente e, quando os fechou, o olhar se perdeu no piso de mármore. Por um singelo instante que pareceu infinito, o foco dos orbes (bem abertos, por sinal) se manteve sobre os azulejos antes que enfim retornasse ao (ex) maquiado.
Uma sensação estranha, era aquela. Vê-lo caído, sem forças para reagir e, ao mesmo tempo, com a consciência de que era a responsável por aquilo por conta das ordens de seu treinador. Encarar o estado deplorável do Aqua de cima para baixo era, para dizer o mínimo, algo que agitava seu coração de maneira inquieta e incerta. A cabeça pendeu alguns milímetros para o lado, enquanto estudava toda a situação que, querendo ou não, se impusera no meio de seu caminho e trazia para si o título não só de parceira de jornada mas, sobretudo, de cúmplice de um crime.
...
A cabeça se endireitou, quase ao mesmo tempo que os braços tombaram ao lado do corpo outra vez. As pálpebras relaxaram, e o semblante vítreo se desfez pacientemente de sua expressão.
Observando de cima para baixo, sentiu o poder de estar no topo do mundo.
E então, o mais singelo dos sorrisos se desenhou em seu rosto.
Moveu-se, então; Sem mais tempo a perder, saltou para o braço de Luch, e escalou até se acomodar tranquilamente em seu ombro, esfregando a cabeça contra a do rapaz num carinho silencioso de inúmeros significados. Aguardou com paciência enquanto o criador recuperava a lanterna encharcada da pequena fonte central mas, foi quando o jovem voltou-se para a escada e começou a ir em sua direção, que suas orelhas se moveram suavemente - e, como reação, uma das patas se pressionou contra a bochecha do unoviano como um pedido mudo de "Espera". A cabeça se voltou na direção do Aqua caído e, por um instante, o olhar se estreitou com sutileza.
Um pouco de atenção seria necessária, claro - e, caso não obtida pelos gestos suaves de Meo-Mey, a felina provavelmente daria seu jeito para... Forçá-la um pouco mais, por assim dizer, pelo menos naquele momento -, mas era possível perceber alguns murmúrios ininteligíveis emitidos pelo há pouco alvo de Meowth que, de maneira teimosa e até meio inacreditável, permanecia consciente. Apesar de ser inviável a compreensão das palavras ditas pelo eletrocutado, três fragmentos se destacaram, claros como a própria neve, perdidos entre os tantos já proferidos:
"...Olhos púrpura...", "...também..." e "...cabelos azuis.".
Trechos possivelmente sem significado, valia ressaltar, mas que infelizmente não poderiam ser investigados muito à fundo. Não pelo estado de Jean - apesar de também ser por conta disso, de certa forma -, mas por barulhos que surgiram ao fundo, contínuos, e que pareciam chegar cada vez mais perto. À primeiro momento, não era possível deduzir o que seriam mas, aos poucos, ficou óbvio: Passos. Inúmeros, provavelmente mais que dois pares, que ecoavam da passagem além das escadas que conduziam ao nível inferior e, como bem dito, que aumentavam e ficavam mais próximos a cada segundo que passava.
...
Talvez fosse hora de, realmente, ir.
Ou não, claro! É por sua conta, meu rapaz.
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O amanhã é efeito de seus atos. Se você se arrepender de tudo que fez hoje, como viverá o amanhã?