(021) — Midnight Rain

Acho meio difícil dizer exatamente o que aconteceu naqueles poucos segundos que sucederam a primeira cruzada de olhares. Como minhas suspeitas confirmaram, aquele era Kyle. Última vez que nos vimos faz tanto, tanto tempo, que tinha até esquecido o porquê de termos nos afastado. Não que ele não tenha feito questão de me lembrar em pouquíssimos segundos, né? Primeira coisa que vi foi o pequeno furto que causou toda comoção que veio depois.

Veja bem, hoje, eu também sou uma criminosa. Roubo, furto, assassinato, praticamente quebro todas as leis que gerem esse universo que vivemos, mas na época, eu não era assim. Apesar dos apesares, eu andava bem na linha, até porque uma criança/adolescente pobre já é o foco das autoridades sempre, né? Imagina se eu fizesse merda a torto e a direito igual a ele. Hoje, se você acha que eu entendo o porquê dele ser assim, não se engane: com todos os privilégios que ele teve a vida inteira, não entra na minha cabeça a necessidade de ser assim. Você acha que se eu tivesse tido as mesmas oportunidades, uma família amorosa (o que eu tive, mas, né?), todo incentivo possível e dinheiro a rodo enquanto crescia, hoje seria uma Rocket?

Não tem como saber, eu acho. Mas apesar de sermos agora "colegas de profissão", não consigo deixar esse pensamento negativo de lado. Sei lá, são muitas coisas para poucos segundos que Kyle me viu, se assustou, passou correndo por mim e saiu voado.

Será que eu devo ir atrás? Mas por qual motivo? Não é melhor deixar pra lá?

... Não. Sou curiosa demais para saber como andam as coisas.

— Ky- — engasguei enquanto observava tudo acontecer diante dos meus olhos; precisava pensar no que fazer para ir atrás dele e COMO — V-VAMOS IVY! — dei um porradão na mesa para fazer a dragoa acordar; não era exatamente o que eu queria, coitada, mas a situação pede pressa ou posso perdê-lo de vista — PODE DEIXAR MOÇO EU SOU UMA RANGER VOU PROTEGER SEU ESTABELECIMENTO — voltei meu olhar para o dono do estabelecimento, fazendo uma pose militar que já vi em vários filmes; dei uma risada pensando que deve ser assim que Daisuke e Tyrant fazem quando tão lá treinando pegando Meowth em cima de árvores — Segue aquele cara!

E agora, deixo nas suas mãos, destino. Se Ivy será capaz de fazer isso, com a pancinha cheia de comida, em tempo hábil para seguí-lo, fica a seu critério. Melhor jogar pro universo, né? O que quer que seja, será.

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Mu Island City

Não sou uma mentirosa compulsória, acredito que sequer minto muitas vezes — fora de missões, claro — mas na minha cabeça, a única forma de não chamar tanta atenção assim indo atrás do ladrão era falar que eu era uma Ranger. Afinal, por que diabos uma garota correria atrás de um LADRÃO que roubou uma loja aleatório de uma cidade que sequer faz parte? Se tem algo que a Equipe Rocket me ensinou é que às vezes é necessário pensar adiante.

Espero não estar errada, né.

— IVY! — no mesmo ritmo que corria, olhava as vezes para trás para apressar a dragoa — VEM, VEM, VEM!

Só consigo imaginar a cabeça das pessoas vendo essa cena acontecendo diante de seus olhos. Mu Island não é lá uma cidade muito convidativa ou com criminalidade baixa, então, deve ser algo normal para os locais, mas ainda assim... Uma cena de perseguição é uma cena de perseguição. Muitas das vezes as pessoas nem ficam preocupadas, mas curiosas. Precisava bolar um plano para quando conseguir alcançá-lo e que-

... Ah, não.

— Puta que pariu. — tive que xingar entre os dentes, levando ambas as mãos a boca quando percebi que havia acontecido — ... Ivy. — respirei fundo, correndo na direção de Kyle, que agora jazia no chão depois do grande impacto — Vai dar merda isso aqui. — mais uma vez falei entre os dentes, já sinalizando com as mãos para que a dragoa pegasse o garoto no colo — ... TÁ TUDO BEM, VAMOS CUIDAR DO CASO! PODE DISPERSAR!

A última frase, em voz bem alta e projetada, foi dita para todos os curiosos de plantão, incluindo o pobre dono do carro amassado. A necessidade de VAZAR dali com Kyle o mais rápido possível era absurda -- não só para ele, mas para mim também, que fingia ser uma Ranger e machuquei o garoto. Quer dizer, não machuquei mas Ivy é minhas responsabilidade, né?

— Vamos, filha. Precisamos achar um lugar distante dos olhares curiosos, vazio e que dê algum conforto a ele, coitado. — cutuquei o rosto do ex-atleta para ver se respondia — Isso se ele tiver vivo, né. Vambora. Me pega e vamos vazar.

Agora era só encontrar um bom lugar.

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Minha maior preocupação era a vida do garoto. Tudo bem que não via Kyle há uma eternidade, mas ainda assim não queria que ele morresse, né? Principalmente pelas minhas mãos — ou melhor, pelas mãos de Ivy com sua cara toda amassada de sono e um possível delírio. Inclusive, acho que toda a comoção que nos cercava naquele acidente era perigosa: não só pelos curiosos que filmavam a cena como também pelas autoridades que poderiam vir atrás de mim. Ser low-profile é quase uma obrigação de todo mundo que faz parte da Equipe Rocket, já que ser exposto dessa maneira pode trazer consequências bem severas. E não tô afim de ter dor de cabeça.

O jeito é torcer para não ser identificada, né?

Pois bem. Kyle retirado do meio dos escombros, Ivy acordada, eu desesperada... Precisava colocar a cabeça no lugar. Se há alguns minutos eu estava afundada numa depressão interminável, agora o desejo repentino de NÃO ME FUDER tomava totalmente conta do meu consciente. Eu sei que já matei algumas várias pessoas durante a minha vida, mas nunca sem querer, porra.

— Aguenta firme. — olhei para trás algumas vezes para checá-lo enquanto procurava algum lugar para descer — Alguma dessas coberturas, filha. Que pareça estar vazia e sem o olhar de gente curiosa. Preciso ajeitar esses arranhões com algumas gazes e álcool que tenho aqui.

Era o jeito, né? Pensei até em se enfiar em alguma floresta ou algo do tipo mas sempre tem algum curioso passeando por elas... E eu não posso arriscar que alguém me veja. O último andar de um prédio, sem muito acesso e com uma cobertura decente talvez dê para o gasto e seja o suficiente para eu ver se Kyle continua vivo e cuidar dos ferimentos. Sorte que tenho uma garrafa d'água e algumas coisinhas comigo já que vivo me arrebentando de tanto socar os outros.

Espero ser suficiente.

— Desculpa te enfiar nessa confusão toda, filha. — acariciei o focinho da dragoa, algo que ela ama de paixão — Sei que cê só queria comer suas coisinhas e descansar. Prometo que vamos dar um passeio decente depois disso tudo.

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Caralho, caralho, caralho, caRALHO! Eu nunca cuidei de alguém tão fudido desse jeito e nunca achei que fosse cuidar, bicho. Hematoma, cortes, sangramentos, Kyle tava já na capa do Batman e eu não tenho ideia de como fazer para curá-lo por algo que a minha própria Pokémon fez.

Meu desespero tá tão grande que nem expliquei como eu desci até a cobertura, né? Pois vamos lá.

Não demorou muito para encontrar uma vazia, inclusive. Apesar de insalubre, uma das mais altas parecia deserta, o que já era um ponto bem positivo. Sinalizei para Ivy descer e, toda destrambelhada, largou o moreno de qualquer jeito no chão. No mesmo pique, corri para encontrar uma parede para eu me encostar, vim puxando ele (com toda dificuldade do mundo, não tenho muita força ok tenho só 1,75cm e 55kg, esse ser etéreo que me observa sabe bem do que tô falando) e deitei sua cabeça no meu colo. Larguei a bolsa no chão, peguei as gazes, o álcool e comecei a limpar alguns dos ferimentos. Com sorte, não haveria nada ali que precisava de pontos ou um cuidado mais minucioso.

— Acorda, homem do céu. Não dá pra você morrer desse jeito, não. — respirei fundo, terminando de limpar o rosto dele e seu couro cabeludo; sinalizei para que Ivy sentasse ao meu lado e eu pudesse apoiar a cabeça dele nela, já que eu precisaria me mexer para cuidar do resto do corpo — Ivy ainda é um bebê, ela não tem noção da força gigantesca que ela tem. — agora virei para cuidar do seu tronco; a camisa toda rasgada poderia ser facilmente descartada, já que além de atrapalhar poderia esconder algum hematoma; assim o fiz, abrindo-a no meio por um dos maiores rasgos, tornando-a quase um jaleco aberto maltrapilho — Ca-ra-lho. — suspirei, levando ambas as mãos até as madeixas e prendendo-as em um coque apertado outra vez; se a corrida já não tinha desfeito ele, a viagem de vôo o faria — Tá, com cuidado, Karinna. — falei para mim mesma, posicionando uma das gazes sobre os cortes acima do braço esquerdo — Com sorte isso vai estancar um pouco. Que merda.

Não sabia a quem recorrer. Nem sabia como. Eu não tenho treinamento de primeiros socorros: tudo que sei foi vendo em filmes, em séries ou por intuição. Daisuke poderia me ajudar, mas não me responde, então, deve estar ocupado. Natalie sabe menos que eu, mas... Talvez possa me ajudar. Posso ligar pro Tyrant também, né? Não sei. Não sei. O pior que esse garoto pode morrer aqui e de forma totalmente acidental. Sei que tive minhas diferenças com ele no passado, mas, caralho... É diferente. Presenciei coisas desse tipo tantas vezes mas quando é alguém """"próximo""" (entre muitas aspas), fica foda.

— Aguenta aí... Vai dar tudo certo. — com uma das mãos limpando a região da lombar de Kyle, peguei meu PokéNav e deixei-o cair sem querer em cima da poça de sangue — Merda, merda. — peguei o aparelho com cuidado, abrindo-o de leve para fazer uma ligação de vídeo para Natalie — Fora de área?

Para Natalie escreveu:

@Shianny

Trim, trim, trim, trim.

Sua chamada está sendo encaminhada para caixa postal e estará sujeita a cobrança após o si-

— Puta que pariu. — suspirei, levando as costas da mão direita até a testa e sujando-a de leve com sangue — Talvez o Simba.

Para Daisuke escreveu:

@Cunha

Trim, trim, trim, trim.

Sua chamada está sendo encaminhada para caixa postal e estará sujeita a cobrança ap-

— Tyrant e Karen. Minhas últimas esperanças.

Para Tyrant & Karen escreveu:

@Tyrant
@Food

Trim, trim, trim, trim.

Sua chamada está sendo encaminhada para caixa postal e estar-

A essa altura eu só peguei o PokéNav e zuni longe de mim, com raiva. PORRA, TÁ TODO MUNDO PRESO EM SEI LÁ UM PESADELO JUNTO? NÃO É POSSÍVEL. Eu poderia também ligar para Winnie, minha nova colega, mas seria estranho demais, né? Poderia também ligar para os outros membros da minha sociedade, como a Artemísia e o Thomas, mas eles já me zoam o suficiente que me meto em encrencas a troco de nada. Shion estava com Daisuke, então, capaz de não responder também.

Puta que pariu. Mais uma vez, era melhor eu ter ficado quieta dentro do meu quarto.

— Acorda, Kyle. Esse monte de cicatrizes aqui... — dava para ver de longe algumas de tão profundas — Você vai saber melhor do que eu o que fazer.

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Conseguia sentir minha cabeça começar a latejar de tanta força que estava fazendo para raciocinar. As gases pareciam ser suficientes, mas será que bastavam? Será que eu tava piorando a situação? E se ele tivesse sangramento interno e eu não tivesse como resolver?

Muitas perguntas pra pouca cabeça e raciocínio.

Kyle não me respondia. Talvez por meio de espasmos ou repentinos lapsos de consciência, mas nada que poderia me ajudar ou compreender com minha mente toda perturbada. Respirei fundo uma vez. Duas. Três. Isso enquanto tentava acalmar minha cabeça para pensar, raciocinar que nem gente.

— Que... Merda.

Percebi, então, em meio uma das minhas tentativas de respirar fundo, um estojinho e um celular deslizando de sua bermuda. Meio atrapalhada, peguei o estojo para ver seu conteúdo. Inclusive, engatinhei até meu PokéNav para recuperá-lo: se houvesse algo nos pertences de Kyle que não sei exatamente como usar mas que servia para a situação, não hesitaria em usar. Por outro lado, peguei o celular do moreno para ver se havia alguma coisa, talvez um diário, umas notas de sobrevivência, qualquer coisa. Com ele semi-consciente, se o celular tivesse bloqueio por digital ou por face-id, seria bem fácil desbloquear.

— Filha, dá uma olhadinha aqui na cobertura e vê se você acha um pouquinho mais de água. — olhei ao redor procurando uma bica; toda cobertura tem, então, deve ser fácil encontrar — Toma aqui essa minha blusa, molha e traz de volta. Vou colocar na testa dele. — voltei minha atenção para Kyle, aproximando um pouco meu ouvido do seu nariz — Pelo menos cê tá respirando bem... Poderia ser pior.

Poderia ter sido beeeem pior.

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