(021) — Midnight Rain

Os olhos de Kyle, bastante lerdinhos, acompanhavam o movimento da garota que sinalizava não só seu carrasco, como seu anjo: a Dragonite. Quando compreendeu o be-a-bá da questão, contorceu-se lentamente para visualizar melher Ivy, e levou um pouco mais que meio século para conseguir fazê-lo ao meio de tantas dores. Ali, um pouco sem graça - e tímida como nunca é -, a dragoa deu um sorriso amarelado e fechou seus olhos em sinal de vergonha e simpatia. Kyle, um pouco bobo, repetiu o ato, e fez uma imitação quase que perfeita da reação da dragoa.

Não sei se foi de propósito ou não, isso talvez nem Kyle saiba, mas ambos ficaram se olhando com sorrisos amarelos e olhos fechados, além de um rubor tímido no rosto. Ambos pareciam envergonhados.

Depois disso, levou mais um século para sentar direito (novamente) e olhar para Karinna, que lhe enchia de água e começava a falar sobre "coisas que nunca mudam". Ali, Souseke apenas ouviu. Em sua cabeça um bocado impura, ele pensava com seu meio neurônio que poderia ter, além de suas fotos sem camisa, uma foto de Karinna vestida de Ranger, como bem acha que ela é, mas certamente não diria isso: não era estúpido a esse ponto.

Não posso lhe condenar por pensar brincadeiras idiotas nesse momento; a maconha ainda está bem forte em sua cabeça oca. A dor lhe consome um pouco do raciocínio lógico também, mas conseguiu recobrir a consciência a nível suficiente para dizer a Karinna:
- E tu viu todas elas? - Deu uma risada tímida. O tom era de denúncia, muito mais do que de de curiosidade; era quase uma pergunta retórica - Mas é que tem coisas que nunca mudam, né?

Dito isso, deixou que Karinna lhe metralhasse de afazeres e ditos. A grande maioria não precisava de aval-oral, ele apenas abanou a cabeça para cima e para baixo e aceitou (sem nenhum tipo de drama) a comida e a bebida. A água era, de imediato, o mais importante, mas assim que teve sua sede saciada, seu corpo clamou por comida; grande parte disso era culpa do canabidiol. Deixou claro, em sua entonação de "uhum", que estava morrendo de fome, mas não falou isso com letras e sílabas; apenas deixou que Karinna tomasse conta do diálogo.

As perguntas eram muitas, a concentração pouca. Num certo momento, ele pediu calma:
- Pera... - Disse baixinho, tentando organizar as ideias. A menina disse sobre a data de aniversário e logo parou - ... outra coisa que nunca mudou - Riu um pouquinho e logo relembrou o passado - Seu aniversário é minha senha desde o dia que descobri ele. Virou costume desde o MSN.

Um pequeno gesto com o rosto mostrou que o olhar dele se grudava ao celular, que agora estava no bolso da moçoila loira. Aqui, depois de tentar revisitar as tantas perguntas de Karinna, deu um suspiro, deixou um dos ombros (o direito) cair por um instante e foi um pouco mais sério:
- Pode ficar tranquila, se eu quisesse roubar meu próprio celular eu já teria feito - Dessa vez ele não riu, seu semblante ficou sério - Mas a primeira coisa que você quer saber de mim é o que eu roubei? - Um segundo suspiro fez seu ombro esquerdo cair, uma pontada de dor fez seu rosto recuar e depois de alguns longos instantes ele continuou - ... é, tem coisas que nunca mudam mesmo.

Ah, a sofrida vida da mulher negra que Karinna é. Nessa parte eu me identifico com a loira: é muito difícil ser passada pra trás por pessoas brancas que são vistas como melhores que nós só porque tem mais oportunidade. Tudo bem, tudo bem, não vamos entrar na militância da Karinna, só quis aqui marcar minha condescendência com minha irmã.

Dito isso, aqui havia um ponto que todos concordariam: Kyle era um privilegiado fudido, e como tal, deu uma risadinha tosca quando ouviu Karinna dizer o tal pedido de desculpas. Ali ele sabia de uma coisa: não precisava (e nunca precisou) das desculpas da guria, mesmo que ela realmente pensasse que era isso que ele queria:
- Se eu tivesse mágoa de ti você acha que continuaria sendo minha senha? - Foi sincero, com a cara mais lavada possível - Além disso... eu nem sei se gosto de saber disso. Sendo bem sincero, eu nunca achei que ser boazinha fosse trazer pra ti a felicidade que tu merecia Karinna, mas eu tenho certeza que evitaria coisas como isso... - Pegou o cartãoo Rocket na mão e firmou em frente ao olha, mostrando tanto para si quanto para ela.

Nesse exato momento ele iniciou uma frase mas logo parou. O suspiro deixou que ele emitisse uma sílaba incompreensível, mas ele não continuou. Ao invés disso, retornou ao assunto de antes:
- Cara... na verdade, acho que se eu tivesse sido preso naquela época e alguém tivesse me parado, eu não teria isso... - Apontou pra algumas das piores cicatrizes nas suas costas - E acho que nem isso... - Apontou pra costela quebrada que Ivy deixou nele - Então eu nunca quis uma desculpas suas, eu queria mesmo era voltar no tempo e que você fizesse tudo de novo. Só que direito dessa vez... puta denúncia meia boca. Pareceu que você só queria me tirar de perto de ti - Gargalhou, tão curto e alto quanto Karinna fez outrora.

Finalmente abaixou a mão que continha o Rocket Card da loira e o colocou no chão, empurrando devagar em direção a guria, lhe devolvendo:
- Guarda isso - Sorriu de forma sincera - Diferente de ti, não to interessada nos seus problemas - Repentinamente, seu sorriso ficou levemente cínico - Me fala como que tu virou mono... dragon? Acho que é isso, né?

Seus olhos, desta vez, miraram Gibble. O dragãozinho devolveu o olhar e, com medo, recuou para trás de Karinna, emitindo um "rawr" baixinho e rouco. Depois disso afundou no coque frouxo de sua treinadora que estava - imagino que ainda - deitada no chão.

O sorriso mais caloroso tomou conta do rostinho de Kyle, lhe dando um ar angelical. Era difíci acreditar que aquele garoto moreno era um criminoso procurado; menos ainda um mafioso. Por outro lado, também era difícil crer que a menina caspenta e desarrumada a frente era uma Rocket já bem promovida.

Contradições.

É aquilo que todo mundo sempre reforça: as aparências enganam.

No mais, Kyle ouviu aquele esforço de desculpas com um sorrisinho alegre. Quando Karinna voltou a deitar, tomou até coragem de se achegar um pouco mais perto e avançou um pouco com sua mão, visando tocá-la nos cabelos e fazer um carinho na cabeça. Não findou o ato; não sabia como ela iria reagir a aproximação. No menor sinal de recuo, ele respeitaria e pararia por ali.

O motivo do chamego não era interesse, era a simples ansiedade que lhe obrigava a manter suas mãos ocupadas sempre. Seu seu beck, seu isqueiro e seu celular, os fios de cabelos loiros podiam lhe caber tão bem como ansiolítico quanto uma luva encomendada vai à mão. Eram bonitos cabelos, apesar do descaso recente.

Uma coisa que nunca podemos negar de Karinna era sua beleza natural, que apesar de todos os pesares, manterá mesmo em seus piores momentos.

No mais, deu de ombros e deixou que a loira terminasse toda a prosa para responder, indo de cima-para-baixo:
- Porra nenhuma - Confirmou - Eu achava engraçado que você não questionava só você mesma, questionava a mim também... parando pra pensar um pouco, tu precisava de terapia, em? - Caçoou de leve - Mas eu te entendo. Quer dizer, eu te entendo "mais ou menos" - Fez ênfase com as aspas com a mão direita, que estava menos dolorida e livre que a direita. Gemeu de dor por fazer a encenação e logo desceu o membro ao chão novamente - Eu acho meio suicídio treinar pokémons psíquicos. Não são pokémons que deveriam ser capturados, não são como os outros... - Deu uma suspirada - Uma coisa é eu ter meu Arcanine comigo, leal, animado, gosta de bagunça, caos e não tem necessidades tão grandes. Ele gosta da vida urbana, é muito mais feliz do que seria se estivesse solto no mato - Uma pausa um bocado longa lhe fez finalizar seu raciocínio dentro de sua própria cabeça. Só depois disso colocou em prática - Psíquicos tem dogmas próprios, tem suas virtudes. Parece uma espécie de genocídio forçá-los a viver dentro de esferas minúsculas e obrigá-los a vida humana. Eu me mataria de culpa.

Por um instante, soou que Kyle fosse meio insensível ao falar isso para Karinna. Quer dizer, de fato não é algo que se diz para alguém que sente culpa em não treinar psíquicos "bem o suficiente", mas ele acreditava que isso coadunava com sua perspectiva, dando razão a moçoila. Apesar disso, uma pequena pontada de consciência lhe fez perceber que a conversa poderia ir para outro lado, então ele levantou o rosto um pouco, olhou para o céu azul e depois encarou os olhos vívidos de sua amiga:
- Só que essa culpa não é nossa... né? Não foi eu ou você que fizemos isso lá atrás - Foi retórico - Acho que é um tipo de reparação histórica você tentar ser a melhor treinadora possível para esses pokémons, eles precisam de gente assim. Só que isso me esgotaria ao máximo... acho esse tipo de cobrança um suicídio.

Foi com um sorriso e um confirmar de cabeças que Kyle respondeu Karinna quando ela falou sobre Síndrome de Estolcomo e perguntou se ele entendia: ele não só entendia como pensava o mesmo de vez em quando. Era um pouco engraçado como dois malandros criminosos se encontravam ali para discutir ética pokémon; como se pokémons fossem melhores que pessoas. Kyle sabia que era esse tipo de mentalidade que o permitia fazer o que faz, e começava a sentir que era nisso que Karinna se amarrava também.

Nenhum dos dois eram perversos, todos os dois tinham seus códigos de éticas e tentavam os seguir ao máximo. Ambos eram "saudáveis" até onde podiam ser e era um bocado cômico para Kyle perceber que tinha mais em comum com sua amiga hoje do que a anos atrás, quando realmente ~conviviam~ juntos.

Por isso, foi um pouco mais aberto quando lhe respondeu a última pergunta. Era algo que ele não queria falar; evitou desde o início, mas agora sentia que devia dar uma resposta suficiente, e assim o faria:
- Não sei - Disse, sem nenhum tipo de instabilidade na fala. Depois disso, deu um gemido tosco ao soltar o ar todo de vez e sentir dor - Quer dizer, por um lado valeu e por outro lado não. Acho que depende da cicatriz - Disse, dando uma revirada nos olhos - Essas três aqui com certeza valeram a pena - Apontou para alguns cortes no tórax e no ombro - Agora... a das costas tenho certeza que não - Deixou que o ar saísse de vez. Virou-se um pouco para mostrar melhor a Karinna e agora ela poderia perceber que se tratavam de marcas de chicote. Quatro mais profundas, outras menores ao redor - Outras não marcaram tanto, então acho que valeu a pena pra me ensinar... algumas foram só burrices minhas como essa aqui - Apontou para uma marca próxima ao joelho - Então... sei lá, depende um pouco.

Era engraçado como Kyle decidiu levar a pergunta ao pé da letra. Ele não respondeu sobre cicatrizes figurativas ou sobre a vida que levava; decidiu falar uma-por-uma. Em certo ponto chegou numa cicatriz cicatriz bem profunda, em sua coxa, que emoldurava uma mordida de Carvanha que tomou na sua última maratona, numa lembrança um bocado melancólica
- Essa aqui definitivamente não valeu a pena, por exemplo - E deu uma risada. Não sabia se Karinna lembrava de sua história, mas não diria muito mais que isso. Depois disso deu uma pausa longuíssima, deixou que a loira falasse o que fosse falar e depois de alguns minutos decidiu propor - Quer fazer algo legal?

É um pouco curioso como Kyle ficou receoso de fazer aquele convite. Apesar dos pesares, ele ainda tinha receio de deixar Karinna entrar, afinal de contas, quando outrora foram amigos, ela o traiu. Não era algo que ele tinha tão forte em seus dois neurônios restantes, mas certamente era algo que lhe assombrava um pouco. Aproximar-se dela podia significar muitas coisas e algumas delas podiam não ser tão boas.

Dessa vez não houve sorriso. No lugar dele, um tom sério e vermelho tomou o rosto de Kyle enquanto ele entrava num parafuso espiritual: "isso aconteceu e eu não fiquei sabendo?". A decepção consigo mesma era visível; ele se sentia tão desconectado de Karinna que ficaria sem saber caso a loira morresse jogada num lugar por ai.

O fato de perceber seu desconhecimento completo lhe deu uma pontada de tristeza, mas logo ele conseguiu mascarar os sentimentos para um tom mais autodepreciativo:
- Eu não tenho nenhum dessas - Disse, com a cara séria, mas logo fez-se a rir - ainda... - Deu ênfase.

Depois disso, deixou que o assunto morresse ali. Era justamente ali que não queria entrar: em parafusos tristes. O motivo de não o querer eram vários, mas o principal era pelo fato de, anos depois, está com Karinna mais uma vez. Se fossem anos atrás, talvez ele estivesse até um pouco bravo, mas a Rocket lhe pegou num bom momento; num momento introspectivo, onde - em análise - encontrá-la é reparar um possível karma.

Dito isso, foi bem incisivo:
- To tentando fazer essa cicatriz aqui valer a pena - Deu um risinho bobo enquanto apontava para o corte mais doloroso em seu ombro - Ou qualquer outra que você me deu.

Com uma pausa um bocado cansada, voltou ao assunto:
- Eu não vou fazer nada, vou só assistir - Com um piscar de olho, sinalizou que quem trabalharia era Karinna - Tem um clube de músicos aqui em Mu, de vez em quando eu levo minha Skeledirge lá, queria ouvir você tocar seu violino... posso?

Diferente de Karinna (e muitos outros), Kyle gostava de Mu. Era um cidade tão tumultuada e problemática que demandava saídas criativas e culturais. Por isso, a cidade tinha muitas garagens de prédios ocupadas com clubes, além de atividades culturais completamente desorganizadas. Você facilmente achava um clube de leitura ou de teatro. Era fácil encontrar terapias variadas, massagens, imersões, hipnoses e outros tantos tipos de escapes. Uma coisa que nunca morreu em Mu Island são os clubes de jazz e de comédia, tão fortes nos anos 60-70, que com o tempo foram perdendo espaço para as figuronas da internet e tantos outros meios mais "massificados".

Em Mu não; os "secrets clubs", como um todo, continuará sendo subcultura por mais um bocado de tempo. Da pra chamar isso de "soft power" local.