(021) — Midnight Rain

Acender a erva do Diabo foi um bocado simples pra nossa querida Rocket. Ela tem experiência? Não sei, mas soube fazer com maestria aquilo que deveria: acender e passar. Digamos que não são pré-requisitos muito complicados de se ter, mas em uma roda de maconheiros, sempre falta um ou outro pra alguém.

Quando passou o cigarro para os lábios do garoto, logo percebeu que fumar era um reflexo medular: sem muita dificuldades ele deixou de respirar pelo nariz, tragando devagar o medicamento. Digo devagar não pelo cuidado que o garoto tinha, mas pela incapacidade de distender demais o tórax, não enchendo seus pulmões por completo.

Depois de três ou quatro tragadas, Karinna relaxou um pouco e pôde usar só uma mão para segurar o bendito-fruto. Com a outra, mexeu habilmente no touchscreen do celular e tentou acertar a senha com as opções que tinha. Ao >lembrar< do aniversário do colega, refutou sua própria teoria de que Kyle não botaria o aniversário de Bley, afinal de contas, porque diabos botaria uma data comemorativa de uma menina que não vê a anos?

Pois bem, pois é um número tão bom de lembrar quanto poderia ser. Além disso, uma coisa que Karinna perceberia logo mais, é que Kyle não quer que seu celular seja facilmente acessado em casos como esse. Se fosse sequestrado, um Face ID ou uma digital abriria seu mundo facilmente, mas uma senha - que não está em seus documentos - pode ser muito bem guardada pela sua língua.

E esta senha era - desculpem o clichê -, o aniversário de Karinna. Eu, quando mais nova, me apaixonei por minha melhor amiga: uso os quatro últimos dígitos do antigo celular dela até hoje em algumas senhas. Uma primeira paixão tem duas características muito fortes, que a faz ser ótimas senhas: é transitória e inesquecível. Por isso, ninguém que Kyle conhece nos dias de hoje sabe quem é (ou quem foi) Bley, tornando uma senha segura-até-demais.

E agora, a bonita perceberia o porquê do acesso restrito.

Com um toque ou dois, a garota poderia acessar a agenda do rapaz. Veria que poucos - ou nenhum - de seus contatos tinha nome: apenas números ou codenomes. Um deles tinha como "nome" cadastrado três emoticons de perigo, enquanto outro três placas de alerta. Um terceiro tinha três emoticons de médico.

Seu PokeZap vivia em modo temporário, por isso não podia acessar as mensagens anteriores com facilidade. O único chat visível era com seus pais e seu antigo grupo de narração, onde fingia ter uma vida normal. Nesses dois chats, em algum momento, disse que estava em Kalos. Mentiu, pois não conseguiria vir de Kalos para Mu tão rápido assim.

Kyle parecia levar uma espécie de vida dupla, cultivando alguns colegas do passado e escondendo um bocado de seu presente. Na galeria, algumas fotos de objetos de ouro e homens mortos coloriam a sequência de selfies sem camisa. Se procurasse demais, poderia achar coisas que não queria por ali... não que isso fosse bem quisto.

No histórico de ligações, a quatro horas atrás, recebeu (e atendeu) três chamadas de um mesmo número. Numa das chamadas, ficou quase trinta minutos na ligação. O "nome" do contato era 36. Por fim, nas SMSs, recebeu um código de liberação para acesso de seu email a três minutos atrás; ou seja, enquanto estava inconsciente.

O ícone de Email era modificado, Karinna não conseguia saber qual era.

No fim, muitos mistérios rondavam este Kyle, mas poucos respondiam a seguinte questão: como salvar a vida deste garoto?

OFF: Eu queria muito dizer que eram só números e era seu aniversário, mas o rapaz ai NÃO TEM O ANIVERSÁRIO NA FICHA, NÉ? Ai com medo da Karinna não ter um aniversário, botei a possibilidade de ser "Bley" também.

PROGRESSO:

Ok, muita informação. Desculpa. Em resumo, Karinna evitou as dickpicks com sucesso, se limitando ao email, a SMS e ao telefonema. Kyle ainda não havia recuperado a consciência, o que dava uma margem boa para Karinna futucar um bocado... na real, num certo momento, a garota ouviu um ronco mais 'seco', daqueles que parecem proveniente de alguém com a garganta tão seca-que-doi.

A maconha foi ótima para fazer ele dormir.

Na verdade, parando pra pensar... ela era forte, né menina? As duas puxadas que você deu talvez sejam suficiente para nublar um pouco sua noção, mas nada que lhe faça cair num sono.

Enfim, né? Vamos aos fatos. Ivy estava ali, um pouco perdida, servindo de apoio, enquanto sua treinadora parava e "apertava" alguns botões. Num deles, conversou com o médico e ele respondeu prontamente a SMS

Bateu a cabeça? Alguma coisa que te impeça de andar?
Se foi leve, compra um tramadol na farmácia e dorme até amanhã, vou te mandar a receita.
Tu ta em Mu, né?

Poucos instantes depois, um beep anuncia que uma receita havia chegado no Email. Por sorte, Karinna havia achado o aplicativo instantes antes e reparou que ele já estava com o acesso "liberado" para aquele telefone, então... aquele código que ela usou para liberar o acesso... ele liberou o acesso de quem? Não sei, não sei nem se vamos descobrir.

Talvez é melhor fingir demência.

Ali, naquele email, tinha um bocado de coisas que Karinna talvez não entendesse. Notas Fiscais falsificadas e objetos roubados, alguns certificados falsos e documentos-digitais com autenticadores. Quase todos tinham o rosto de Kyle, porém com outro nome. Nada muito preocupante ou perturbador, eram apenas PDF's, NFE's, Documentos, Receitas digitais e outras paradas. As vezes uma reunião com data-e-local, mas sem nenhuma identificação de remetente. O que parecia se construir era um garoto que entrara num mercado negro de peças valiosas, mas nada muito grandioso que envolvesse um grande mistério.

Claro que trabalhar para mafias de pessoas ricas é preocupante, mas Kyle não parecia ser algum tipo de traficante de pokémon, caçador de lendários ou despertador de fúria de Kyogres, nem mesmo um assassino parecia ser o caso.

No mais, fez a ligação, que tocou, tocou e ninguém atendeu. Horas mais tarde, o "ser" iria retornar, mas não por agora. Por agora, o ronco de Kyle ficava um bocado mais forte e ele começava a tombar. Ivy permitia que ele deitasse um pouco em suas pernocas, se sentindo mal por ter machucado o rapaz "sem querer".

PROGRESSO:

Talvez por estar chapada; talvez pela situação não demandar desespero. Independente do motivo, Karinna estava estranhamente calma. Ainda que não houvesse nenhum tipo de experiência, ela concluiu que se Kyle não piorou até agora, não pioraria tão cedo, então aceitou apenas o remédio remoto. Ali, com aquela receita, poderia pegar qualquer coisa. O documento estava digitalizado também no email.

Com a dragoa azul e a tecnologia comum, Karinna poderia ir até a farmácia e voltar como bem quisesse; com toda a liberdade narrativa possível. O que aponto é que não houve nenhum contratempo e foi fácil achar uma farmácia 'logo-ali'. Hoje em dia, o que mais tem numa cidade grande é farmácia.

Nada aconteceria a Kyle, além de uma caída rápida enquanto dormia. Não havia cobertura, mas próximo da porta-de-entrada era possível pegar uma sombra, graças ao sol que, ao inclinar-se, permitia que a parede-de-entrada-e-saída se projetasse (em sombra) no chão. Sem manjedouras para comemorar o natal, sem panos e sem lençois. Talvez seja legal comprar algumas coisas no caminho, ainda mais se for passar a noite ali em cima.

PROGRESSO:

Quando Karinna voltou, algo um bocado inédito ocorreu. Se olhasse no relógio, veria que demorara cerca de 2 horas e meia para fazer tais compras e movimentações e agora o sol estava um pouco mais forte que antes. Ao chegar na cobertura, não viu Kyle e Ivy de imediato, percebendo que eles rotacionaram um pouco para pegar o novo-ponto-de-sombra.

Além disso, Kyle estava acordado. Não digo apenas desperto: ele estava completamente acordado. A situação engraçada era que Ivy, diferente do que Karinna lhe pediu para fazer, não estava cuidando dele, mas sim encostada numa parede qualquer e tirando um belo de um ronco, com os brações bem abertos.

Fora Ivy que movera Kyle, é claro, mas pela sua dor, este optou por não levantar e deixar a Dragonite em paz, ao invés disso deitou na barriga da dragoa e pendeu para o lado, como se a usasse de travesseiro. Não fez isso para se aproveitar, mas concluiu que, desta forma, se aconchegava e não corria o risco de sofrer um amassamento caso Ivy começasse a escorregar sobre ele.

Além disso, a cena era um pouquinho fofo: Ivy deixava - conscientemente ou não - Kyle deitar ali, como se houvesse algum tipo de legitimidade no ato. Quando ele viu Karinna, ele não se deu o trabalho de levantar: já havia entendido que seria difícil demais. Ao invés disso, ergueu apenas a mão direita - que pressionava muito menos os machucados - e acenou. Com um sorriso meio pálido, comentou:
- Oi...

Não era frígido, na verdade, era tão casual quanto podia ser. Como se estivesse vendo uma amiga, e não há nada de "antiga amiga" na minha descrição: era um oi tão corriqueiro que soava como uma pessoa cotidiana, tal qual eram no passado.

PROGRESSO:

Apesar do ato carinhoso de Karinna, não podíamos dizer que ela fora cuidadosa ou calma. Quer dizer, não houve euforia ou afobação ao ver Kyle acordado, mas também não houve nenhum tipo de distanciamento social. Jogou suas compras no chão com pouco cuidado, agachou-se rapidamente e marchou até o menino para "examiná-lo", ainda que não fizesse a mínima ideia do que estava fazendo.

Aqui Karinna descobriu algo que deveria ser bem óbvio, mas não é; examinar alguém consciente é muito mais fácil. Kyle, sem saber muito bem o que falar (ou o que aconteceu), ficou quieto e recebeu uma metralhadora de perguntas, enquanto emitia um "ai ai ai" dramático com os toques-examinadores. Quando a loira finalmente parou de falar, o garoto sentiu que era sua vez de responder, então comentou, em tom de voz falhado:
- Parece que eu fui atropelado por um caminhão - Disse, jogando a cabeça pra trás - Doi pra respirar, pra falar, pra se mover... mas acho que to bem - Deu um tapinha no próprio ombro esquerdo, usando a mão direita - Lavô ta novo - Uma risada curta foi esboçada, mas a dor lhe fez parar de imediato.

O tom brincalhão podia ser um bom sinal, mas Kyle realmente estava um pouco enuviado. Não sabia responder se estava com fome ou se tinha alguma outra demanda; só sentia uma sede enorme e um bocado de dores. Deixou que Karinna se afastasse para ver sei-lá-o-que na sua bolsa, voltando com um sorrisão. Quando sentiu que a moçoila estava disponível pra si mais uma vez, fechou um pouco o semblante, arqueou a sobrancelha e indagou:
- Você não ia me prender?

PROGRESSO: