(021) — Midnight Rain

Era um pouco percebível a surpresa que Karinna tinha quando ouvia o nome do pokémon de Paldea. Nessas horas, Kyle até sentia seu ego inflar um pouco mais; afinal de contas, valia um pouco a pena ter os contatos que tinha. Deixou que a emoção de Karinna voltasse e ela retornasse aos lances pragmáticos.

Aqui, devo parar um pouco o que estávamos fazendo e lembrar vocês de um problema que nem Kyle deu por si ainda: ele não estava com seus pokémons. Ele não reparara isso até o mísero momento em que Karinna começou a organizar o vôo e ele enchera o pulmão para dizer "ei, eu me viro". Ali, antes mesmo de por a mão dentro da bolsa, percebeu que estava faltando algo...

... sim, faltando algo.

E fora ai que o garoto, repentinamente, ficou desesperado.

Isso ocorreu logo após do casaco ter sido colocado no mono-fire. Ele continuou sentado, afinal de contas, era alto-demais para que Karinna lhe vestisse me pé, abraçou a si mesmo e apreciou o presente como se tivesse verdadeiramente gostado. Claro, ele estava ironizando o fato tanto quanto Karinna, mas entrou na piada muito facilmente, dizendo que aquela roupa "combinava com seus olhos". Poderia ficar ali na brincadeira por um bom tempo, até reparar que... bleh, tinha algo errado ali.

Talvez, apenas talvez, Karinna nunca lhe viu assim.

Botou as duas mãos na cabeça, levantou-se em um pulo e simplesmente esqueceu todos os seus curativos e machucados, andou para um lado para o outro e começou a resmungar "puta que pariu, puta que pariu, puta que pariu". Ele simplesmente não conseguia lembrar.
- Alguém me roubou? - Perguntou para si mesmo. Um pouco desacreditado, olhou pela sexta vez seguida seus bolsos - Meu celular?! Ele também sumiu! - Disse de imediato, um bocado desesperado. Levou três longos segundos para lembrar que seu celular estava com Karinna - Puta merda. Tu viu minhas pokébolas? Diz que viu, pelo amor de Deus - Uma respirada longa e uma andada para-lá-e-para-cá findava o desespero - Caralho Karinna, cadê meus pokémons CARALHOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOO - Ele não estava, de modo algum, xingando a guria. Ele simplesmente levantou a cabeça para o céu e deu um belíssimo grito ao além.

E foi assim que, num movimento bastante ágil, Kyle andou até a garota e pediu o celular de volta, mais uma vez mandando um xingo para o além. Eu juro que, neste exato momento, ninguém diria que esse homem está com duas costelas quebradas, cheio de hematomas... em suma, não parecia o mesmo homem que acabou de ser atropelado por um caminhão chamado Ivy.

... falando em Ivy, a Dragonite (junto de Gibble), começava a se alvoroçar perante tantos gritos histéricos.

PROGRESSO:

Uma pantera cor-de-rosa, de dois metros, completamente possessa? Guarde essa imagem na cabeça; ria amanhã. Não era atoa que Kyle era o homem mais risível deste continente naquele momento: a forma como a cena foi montada compôs isso com maestria, como se a narradora e o player fizesse até de propósito.

Ao menos isso faria Karinna sentir "menos" sentimentos possíveis ao vez um grande mafioso com cólera: sentiria menos medo, receio e lhe julgaria um pouco menos. O alívio cômico tinha uma finalidade; lhe tornar mais palatável, ainda que tenha se tornado o clássico homem descontrolado.

Seus olhos começaram a obscurecer, seu semblante foi ficando mais ríspido. Quando Karinna lhe abaixou os braços, percebeu que seus músculos todos estavam rígidos e havia uma certa agressividade no seu passo. Não com ela, mas com o resto do mundo. Ele pegou seu celular e, sem sucesso, tentou lembrar seus últimos passos.

Havia um enorme buraco em sua memória. Lembrava-se de ver Karinna, correr e aparecer ali, com um beck caído e um Dragonite ao seu redor. Não sabia quanto tempo se passara, com quem mais teve contato e muito menos da colisão. Um buraco lhe permitiu que pequenos fragmentos oníricos, tão inúteis quanto desejos à Arceus.

Com os olhos assombrados, começou a analisar a tela do seu aparelho tecnológico. Colocou num histórico recente de conversas e viu que o ato só serviria para lhe refrescar a memória, pois usou o "modo temporário" em grande parte das suas negociações. Ainda assim, rememorou detalhe importante desse último "trabalho" que fizera com a loja de penhores em Mu Island e, quando percebeu o "gritante aos olhos", seus músculos deram uma relaxada brusca e seus olhos perderam o tom enegrecido.
- Eu guardo em uma "bolsa" - Fez aspas com a mão, um pouco com preguiça de explicar. Apenas apontou para um dos braços com corte profundo e sinalizou que ficavam ali, presas como ombreiras.

Depois disso, deu apenas um "ok" ao fato de ver um vídeo; sentia que aquilo só lhe daria mais certeza do que aconteceu. Pediu para que Karinna rodasse a mídia, que encontrou aos montes em um site de notícia que compilou o ocorrido. Quatro vídeos pegaram o momento do impacto; os quatro em ângulos diferentes.

Era um pouco estranho como apenas dois vieram do mesmo ângulo do homem-da-loja-de-penhores. Quando este parou na frente de Kyle amassado, uma das câmeras foi completamente tapada, não permitindo ver a continuidade do "filme". A segunda, pela graça divina, continuou. Focou no ato do homem avançar para pegar seu cordão de volta e xingá-lo de vários nomes. O curioso foi perceber que, quando pegou o cordão com força da sua mão, também puxou um "treco preto" com força, que saíra pode debaixo da manga-da-blusa de Kyle. Fora tão rápido que, naquela hora, ninguém o viu tirando os dois. O movimento sincronizado com o ato de puxar de volta o colar ofuscou tudo.

O mais engraçado é que Karinna não precisou ver o vídeo para descobrir isso: o Twitter inteiro já estava criando um mistério em cima da "faixa preta retirada pelo vendedor". A investigação ocorria na vida real? Não, mas na internet, um bocado de gente teorizava sobre o ato. Era uma discussão puramente virtual, o que não tirava - muito - a materialidade dela.
- Filho da puta - Disse Kyle, um pouco mais calmo. Ao menos agora ele sabia onde buscar.

Começava a digitar algumas coisas no seu celular, mas se lembra do número que tu ligou e eu disse que retornaria mais cedo ou mais tarde? Pois então, ele estará ligando nos próximos minutos.

PROGRESSO:

Kyle estava diametralmente mais tranquilo agora que sabia onde estava seu pokémon. Havia um motivo para tal? Sim, mas Karinna não sabia até então. O receio do homem era ter perdido seus pokémons para alguém que o conhecia, sabendo que fora apenas um "ladrão", algo ficava um pouco mais claro na sua cabeça. Por isso, quando Karinna tomou seu lugar de "desespero", ele deu um suspiro profundo e tocou-a com as duas mãos, sentindo uma forte pontada de dor na costela quebrada e emitindo um gemido alto. Agora ele lembrava que estava "doente".
- Calma, moça - Seu tom de voz era um pouco mais agradável. Não é como se Karinna estivesse em surto, mas ela estava se sentindo um bocado culpada - Roubar pokébola é diferente de roubar pokémon.

Uma risadinha deu uma cor ao rosto de Kyle. Ele parecia agir como se já houvesse ocorrido outra vez, talvez por isso havia certa confiança nessa "recaptura". Andou um pouquinho a beira do prédio, olhou para Karinna por mais um instante e deixou que seus olhos penetrassem nos dela, ficando ali por um tempinho, em silêncio, apenas encarando-a fazendo diversas perguntas.

Depois de um mísero momento, ele olhou para o céu mais uma vez e concluiu:
- Apesar de tudo que tu disse... - Deixou que os ombros caíssem, diminuindo a dor constante e aumentando as pontadas - ... Você ta a mesma, Karinna.

Sim, era a mesma menina preocupada que queria perseguir aqueles que estavam estupidamente errados na situação. Era a mesma pirralha que o denunciou, a mesma garota que lhe ganhou no torneio, a mesma menina que se preocupava, apesar de bater forte quando achasse necessário. O que mudou, talvez, foi sua noção de certo e errado, mas em suma, era a mesma mulher. Crescida, de fato, mas a mesmíssima.
- É o cara que me contratou - Demorou responder, mas foi objetivo - Aquele cara não é um vendedor de penhores, é um ladrão. Um ladrão que rouba ladrão, como você viu... - Deu um suspiro. Achou essa resposta suficiente - Ele que me mandou pra Mu Island, ele que tinha a localização dele.

Ali, ele parou um pouco e apontou para o chão, virando-se de costas para Karinna mais uma vez:
- Eu vou precisar de carona, então você vai ter que me ajudar mesmo - Se fosse em condições especiais, ele não precisaria - Só preciso que esse outro filho da puta pegue o celular.

Já ouviu o ditado "Deus ajuda quem cedo reclama?" pois é, se nunca ouviu assim é porque não existe, mas idai? Logo mais o celular de Kyle começou a tocar e ele não demorou pra atender. Foi uma conversa meio mecânica, não vejo muito porque botar aqui ela na íntegra, a menos que tu queira se meter.

Importa dizer, por ora, que eles se cumprimentaram de forma seca. Kyle, em tom calmo, explicou o acontecido e pediu uma segunda localização possível. Memorizou três endereços, mas Karinna não sabe disso. Ao fim, disse um "ta ok" informal e olhou para Karinna, como se esperasse o aval dela para ir. Eram três endereços, mas a partir do acontecido, ele tinha muito mais fé em um.

PROGRESSO:

Quando Kyle ouviu a palavra "nervosa", deu uma risada que escapulira pelo nariz, andando calmamente até Karinna. Ali, ele ergueu com lentidão os braços e colocou-os ao redor da moçoila de cabelos loiros, fazendo seu coque de cabelo desabar sobre seus braços. Apoiou nela por um instante, olhando-a no olho em completo silêncio. Depois disso, usou o resquício de força para puxá-la para mais perto e abraçá-la por completo, cruzando os braços por trás do seu pescoço:
- Obrigada, Karinna - Disse, afundando o queixo, a boca e o nariz nos cabelos desgrenhados no topo da cabeça da Rocket.

Ali ele percebeu o quanto Karinna era pequena. Quer dizer, ele sempre soube que ela era menor que ele, mas sempre a viu como uma mulher maior-que-o-normal. Talvez por isso nunca lhe sentiu com pequenez, mas agora, ao apoiar seu queixo no topo da cabeça da garota, ele percebia o quão pequena era a menina de seus sonhos. Deu um sorriso besta ao pensar que gosta muito de uma anã de jardim, mas apesar de ter deixado o riso exposto, não deixou que a ideia saísse pelos seus lábios.

Ela certamente ficaria irritada.

Depois de soltar, Kyle olhou para trás e viu Ivy lhe encarando, com uma sobrancelha arqueada. Ela não parecia estar com ciúmes, muito menos irritada com o ato, era algo muito mais raro... muito mais incomum... A inocente da Dragonite estaca - pasmem - desconfiada. Não era uma desconfiança da índole de Kyle, mas do significado daquele abraço.

Quer dizer, vigiá-lo é bom, afinal de contas, ele é um exímio ladrão. Apesar dos pesares, sua desconfiança não era sobre isso. É uma desconfiança de alguém que você já pegou confiança; uma sensação que você só pode sentir por alguém que você miseramente julgou conhecer um pouco. É o tipo de sentimento que você só tem se já conhecer a normalidade de algo e reparar que está estranho...

... e depois de dormir grudada com alguém, você acaba conhecendo um pouco. O que Ivy sentia era que, de algum modo, Kyle estava muitíssimo triste, mas não era por seus pokémons. Bem, não importa tanto, não é?! Apesar de ter esse pressentimento, Ivy não se sentia tão comovida por Kyle, pois apesar do estranhamento, ele não era nada além de um recém-chegado. Por isso, a dragoa se posicionou para alçar vôo, se tornando a montaria.
- Ah, ele não tem uma loja - Finalmente respondeu Karinna - Ele usa um container do porto. Na verdade ele é de Paldea, mas não para em um lugar. Ele rouba, viaja e vende o que roubou em feirinhas, fingindo ser uma loja de penhores - Montou em Ivy, logo depois que Karinna o fez, aconchegando-se atrás, deixando uma distância confortável - Ele faz leilões de itens muito caros. É bem parecido com algumas feiras de Paldea, não sei se já ouviu falar... - Deu um suspiro, segurou-se na sela e começou a apontar para uma certa direção - Eu tenho o flybnb dele e o container dele no porto. Se o que eu acho que aconteceu realmente aconteceu, a gente tem que ir pra lá.

O dedo apontava para uma área residencial. Do alto do arranha-céu dava para ver o esboço de um condomínio fechado no único espaço arborizado de Mu Island. Ali, certamente, não era um porto.

PROGRESSO:

Eu diria que tínhamos duas opções: voar diretamente até a casa em que o homem deveria estar, ou parar na portaria, se identificar e pedir para entrar. Kyle ponderou sobre estas duas opções: certamente um condomínio de luxo teria alguma forma de proteger seu espaço aéreo, mas surgir na portaria, dando a cara-a-tapa, não parecia a melhor das ideias... afinal de contas, havia um pequeno-grande noticiário sobre o que aconteceu.

No fim, ele não optou por nada. Decidiu parar próximo dos altos muros condominiais e perguntar a opinião de Karinna. Ele já estava com o assunto na ponta da língua quando a viu corar completamente e parou. Raciocinou a cena por um mísero instante e emitiu um "tsk" irritadiço com a língua. Não queria que Karinna tivesse lhe ouvido, muito menos ouvido sua decepção.

Quer dizer, ele não era uma criança: sabia que depois de anos, uma menina que nunca lhe amou não ia lhe amar num passe de mágica, mas nem por isso ficaria menos descontente com isso. No fim, decidira fazer aquilo que todo o bobo apaixonado acaba fazendo: tentando descobrir o que não devia:
- Namoradinho? - Deu um risinho falso.

Só depois da resposta ele iria se recompor e perguntar a opinião de Karinna sobre o que deveria perguntar.

PROGRESSO: