(021) — Midnight Rain

Não é como se eu tivesse disfarçado - e honestamente sequer disfarçaria uma coisa tão boba - mas Kyle percebeu minha mudança repentina de expressão ao ver a mensagem de Simba no PokéNav. Ele não é idiota, então, com certeza entendeu do que se tratava. E eu não vou ser escrota e fingir que não entendi o recado no estalar de boca e na pergunta imediata e irônica dele que, por sinal, ignorou as minhas anteriores. Sousuke estava com ciúmes? Não sei.

Mas pareceu.

- Por quê? - ergui a sobrancelha direita, cruzando os braços em seguida - Tá com ciúme? - brinquei, descruzando os braços pra empurrar um dos seus ombros ~com delicadeza~; em seguida, joguei algumas mechas do cabelo agora solto para trás dos ombros - É um... amigo. A gente se curte muito, é isso.

O que não é mentira. Nós ficamos sempre e nos tratamos com muito carinho e amor mas nunca houve oficialização de... Nada. Nunca paramos para conversar sobre isso, inclusive. Importante pontuar também que não da minha parte, porque eu sou maluca por esse idiota, inclusive o próprio sabe disso depois que eu fui hipnotizada em Fortree e ~forçada~ a falar o que eu sentia. Isso antes de ser sequestrada horas depois e deixada pelada como sacrifício no meio da floresta por um culto sangrento, então, sinceridade naquele dia estava naturalmente em alta.

... É, já passei por cada coisa nesse mundo que cês nem imaginam.

E foi aí que tive uma daquelas epifanias express que acontecem em um milésimo de segundo e ligam todas as peças umas nas outras. Meu aniversário como senha, o abraço afetuoso, os ciúmes agora... Kyle ainda gostava de mim. Não como uma lembrança da nossa vida antiga, da nossa adolescência, não como amiga (que era o que eu achava e por isso ficava zoando ele), mas como outra coisa. Se antes eu desconfiava, agora tinha certeza. O moreno nutre um sentimento de anos e anos atrás, mesmo depois de eu ter feito o que fiz. Comecei a fitá-lo por alguns segundos, principalmente após a minha resposta enquanto processava tudo na minha cabeça, o que demorou uns bons segundos, quase um minuto.

Pelo menos é um "gostar" e não um "amar", né? Ao menos é o que eu acho.

Menos mal.

- Casquinha. - foi o que saiu dos meus lábios depois de ficar tanto tempo em silêncio - Consegui lembrar. Casquinha do Sr. Boroto, lembra? - ergui a cabeça, fitando um pouco do céu da cidade - A gente ia lá e você comprava pra gente. São as melhores casquinhas de Krabby que já comi na vida. - tornei a olhar para o moreno - Vamos voltar lá e eu que vou pagar dessa vez. Você é persona non gratta em Olivine mas qualquer coisa a gente compra uma peruca loira longa pra combinar com esse seu look de agora. - enfiei a mão no bolso dele, pegando seu celular e anotei meu número - Quando quiser, é só chamar. - botei o celular no lugar - Agora... Vamos descer aqui? Não acho ideal passarmos pela entrada. Qualquer coisa é só fingir que moramos aqui e estávamos admirando o horizonte, sei lá.

Talvez fosse melhor não ter dito nada? Talvez. Mas um convite amigável, entre dois amigos de anos que vão almoçar numa birosca em sua cidade natal não faz mal a ninguém. Não é como se eu estivesse com pena e tentando compensá-lo por gostar de mim quando eu gosto de outro, mas eu de verdade gostaria de manter sua amizade por perto, ainda mais agora que resolvemos nossos problemas.

Ladrão por ladrão, eu também sou criminosa, né?

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Tá. Talvez eu tenha lido demais algo que não era tão-profundo-assim. É capaz de Kyle nem mesmo gostar de mim como antigamente, mas aquele tom e aquele estalar de boca eram bem suspeitos... Bom, melhor ainda, assim posso continuar zoando ele sem peso na consciência. Ele gosta de mim como amiga mesmo e vice-versa. Ao menos o convite para casquinha de siri foi aceito e eu consenti com a cabeça quando perguntou se poderia ser cobrado quando quisesse. Casquinhas de Krabby são sempre bem vindas.

- A sorveteria eu não sei exatamente. Depois da enchente as coisas ficaram meio difíceis pra todo mundo de lá, né? - comentei, suspirando em seguida ao lembrar do caos que Tohjo estava quando fui ajudar - ... Mas espero que sim, qualquer coisa vamos em outro lugar.

E assim seguimos para a ideia genial de Kyle: se misturar em meio aquele condomínio burguês. Sério, era absurdo pensar que lugares assim existem, principalmente dentro de Mu Island - desde mercadinhos até quadras de tênis e golf que se estendem por quilômetros e que muito pouco se parecem com o resto da cidade. Ali não era feio, poluído, cheio... Muito pelo contrário. Para morar ali é preciso ter muita grana, o que me faz pensar que esse Flybnb deve ter sido uma fortuna.

Apesar do choque inicial daquela outra realidade, pousamos em frente a um mini-mercado, como se fôssemos duas pessoas locais que só saíram de casa pra comprar o jantar. Como o objetivo era não chamar atenção -- e depois de hoje na ilusão do Centro Pokémon eu percebi que Ivy é quase um outdoor amarelo e pançudo -- sinalizei para a dragoa que iria retorná-la para sua Pokéball. Ela não ficou muito feliz com isso já que estava de olho em algumas guloseimas do mini-mercado, mas depois de uns bons segundos de luta e promessas que compraria alguma besteira pra ela comer depois, Ivy cedeu.

- Vem... Vamos comprar a janta. - baguncei ainda mais um pouquinho meu cabelo, agora ajeitando-o todo para frente do meu ombro direito - Temos que entrar no personagem, pro caso de ter câmeras ou transeuntes. - disse entre os dentes mas alto o suficiente para que Kyle escutasse; peguei meu braço esquerdo e entrelacei no direito dele, nos guiando para dentro do mini-mercado - Você quer lasanha ou pizza?

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Com Kyle entrando na brincadeira, tudo ficava mais fácil. Andamos pelo mercado, brincamos com o moletom apertado que emprestei e compramos uma bendita lasanha congelada, que certamente era dinheiro jogado fora - a não ser que ela sobrevivesse após todo plano mirabolante que temos para a noite.

- E onde é "casa" pra você, Sousuke? - comentei, mas estava curiosa de verdade - Não precisa responder se não quiser.

E assim seguimos para a rua, caminhando no que parecia não acabar mais. As casas do condomínio eram todas muito bem cuidadas, com arquitetura elegante e, sem sombra de dúvidas, caríssimas. Sabe-se lá o porquê alguém escolheria comprar uma casa cara numa cidade dessas, mas tem doido pra tudo nesse mundo. Me espanta, mas não me surpreende.

Finalmente chegamos. Dois metros de vidro, com um quintal grande e uma porta com código, bem moderna como já era de se esperar. O que aconteceu com as portas que a gente pode simplesmente arrombar com força bruta? Ninguém usa mais? Que tristeza. Minha experiência com portas modernas desse estilo não é das melhores... Se ela resolver ativar algum alarme e trancar a casa inteira, não vamos conseguir fazer nada.

- Ei... Olha ali. - puxei Kyle pela camisa para dar uma olhada no quintal - Três cachorros. Não conheço esses bichos, mas parecem ser fortes. - puxei minha Pokédex para analisá-los; finalmente seria útil depois de tanto tempo sem usá-la - Dá pra eu tentar bater neles sem fazer barulho? Chamar a atenção dos vizinhos atrapalharia nossa vida demais. - dei uma olhada nas ruas para ver se via alguém ou se alguém iria aparecer - Talvez...?

Peguei a esfera bicolor de Ivy, Okawa e Kuay e as separei na minha frente. Tudo dependeria da quantidade de pessoas na rua, se havia alguma câmera nos observando ou vizinhos curiosos... Não dá pra dar mole.

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- Acho que... Olivine também. - demorei para responder de propósito, não estava esperando que ele jogasse a pergunta de volta pra mim - É meio complicada minha relação com Johto num geral mas tenho trabalhado isso.

Uma mentira deslavada, mas Kyle não precisava saber disso. Olivine ainda é complicada de visitar, mesmo depois das inundações de Tohjo e a base da sociedade sendo lá - evito até mesmo sair na rua quando tenho que fazer alguma parada lá. Mais um problema que vou empurrar com a barriga para o futuro...

Não me julga, sei que vocês fazem a mesma coisa.

Passado o leve devaneio, ajudei o moreno a pegar o cartão dentro da caixinha de correio, já me preparando para ver como bater nesses cachorros. Não tenho nenhum Pokémon muito experiente comigo além da Ivy, já que Okawa apesar de ter lutado algumas vezes, ainda tá recuperando sua plumagem dos contrabandistas que tinham ela como refém. Nessas horas Sashimi faz bastante falta, já que tenho certeza que sua Mega faria um bom estrago aqui.

E vai ter que ser na covardia, viu? 4 contra 3. Se bem que você pensar que dois são literalmente bebês, é um 2 contra 3 bem equilibrado. Espero que o que Kyle disse sobre o maluco não ser conhecido como bom treinador seja verdade, derrubar esses bichos o mais rápido possível é essencial.

- Dragonite, Altaria, Gible e Bronzor. - peguei a esfera que faltava e saltei o muro para entrar no quintal; precisava ser rápida para liberar todos eles antes que os cachorros só viessem e me comessem viva; liberei todos eles o mais rápido que conseguia - Talvez seja bom começar pelo fantasma, sempre uma dor de cabeça. Ivy, duplo Fire Punch no cachorro fantasma, caso ele caia, use Iron Head no pão-doce. Okawa, Flamethrower no fantasma, depois use Hyper Voice. Kuay, Sand Tomb no noturno e depois no pão doce. Kimbap, Reflect e Light Screen. - colocar dois monstrinhos pequenos para batalhar assim é complicado, mas todos meus filhos sabem que proteger os menores é sempre prioridade - Ivy, Okawa, fiquem na frente dos seus irmãos mais novos, não deixe que esses cachorros sarnentos cheguem neles. - voltei meu olhar para Kyle - Se ele tiver, a Ivy dá só uma cabeçada nele. Não mandei roubar seus Pokémons.

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Bom, pelo menos a pançona da Ivy servia para chamar atenção dos cachorros de guarda e deixava os bebês intactos, o que aliviava um pouco minha preocupação. Inclusive, não botei muita fé, mas a dragoa conseguia derrubar o fantasma bem rápido, que me arrancava um peso dos ombros: depois do trauma que passei algumas semanas atrás com Destiny Bond, não quero nunca mais enfrentar ghost-type com a Ivy.

- Ivy, duplo Dual Wingbeat no noturno! Okawa, duplo Hyper Voice. - dei uma respirada, era muito bicho pra ordenar - Kimbap, duplo Psychic em quem ainda estiver de pé. Kuay, você ataque com Tackle quem sobrar também.

Não parecia que o embate ia seguir por mais muito tempo, porém, ao ver Kyle passando para seguir sozinho me fez semi-cerrar os olhos desconfiada. Não tem motivo pra ele sair entrando sozinho dessa maneira todo machucado, até porque, se o cara tiver em casa, capaz de apanhar por estar todo quebrado. Além de não ter Pokémon pra se defender.

- ESP- - era pra evitar gritar, né? mas não consegui - ...pera! Cacete. - respirei fundo, massageando as têmporas - Entrar sozinho é receita pra dar merda. Me espera.

Assim que a batalha acabasse, eu retornaria todos os pequenos menos a Ivy, para ir atrás de Kyle e entrarmos no diabo da casa do ladrão de Pokémon.

Espero não ter nenhuma surpresa.

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